O que um texto clássico que pouco ou nada tem a ver
com
relacionamentos amorosos pode nos
ensinar?
É sobre isso o texto de hoje do redator
Marcelo Zorzanelli, na
seção
Homens de Segunda.
Tem uma frase que me motiva muito, talvez
até a viver mais tempo. Parece que está em “As Neves do Kilimanjaro”, de Ernest
Hemingway, mas eu não me lembro bem. Vai mais ou menos assim: “Quero viver o
bastante para aprender a contar as coisas que vivi”. Permanecer vivo, lutando,
para escrever as canções sobre as batalhas. A história é contada pelos
vencedores.
Não sei por que estava pensando nisso. Ah,
claro. Tive uma espécie de febre literária ontem à noite, no aeroporto. Deparei
com o J’Accuse, num livrinho de bolso da LP&M, e comprei. É a coletânea dos
artigos do caso Dreyfus editada pelo próprio Émile Zola, um ano antes de morrer.
Para quem não sabe, capitão Alfred Dreyfus, de origem judaica, foi condenado por
alta traição pela corte francesa, acusações estas baseadas em documentos falsos.
Há, na bela introdução, feita por um estudioso francês de quem não me lembro o
nome — embora o livro esteja bem aqui ao lado, e bastasse abri-lo na página 2
para saber — bom, como ia dizendo, há ali uma narrativa que contém todos os
elementos da melhor literatura, a paixão, o ódio, a intriga e o ritmo da melhor
literatura, e tudo era verdade e era lido nos jornais, dia após dia, no ritmo
fulminante das grandes comoções públicas. Foi quase tudo escrito de chofre, às
vezes na oficina do jornal. (Quer se surpreender? Veja a tiragem do jornal que
publicava os textos de Zola: 300 mil cópias diárias; e não era o Figaro, que,
imagino, embatumava ainda mais leitores). Tudo publicado ali por volta de 1888,
89.
O capitão de origem judaica Alfred Dreyfus era
acusado do crime de lesa-pátria mais aviltante para um francês, a entrega de
segredos de guerra, de um dossiê que ficou conhecido como “o borderô” aos
alemães, vizinhos e inimigos naturais. Forjou-se até um documento para que
Dreyfus fosse logo culpado e se calasse a grita nos jornais. Assim permaneceu a
situação — o inocente preso e humilhado — até que uma prova identificasse o
verdadeiro culpado; uma prova que ricocheteou em meia dúzia de oficiais do
exército sem sair de dentro da caserna. O caminho que levou essa prova até Zola
é interessantíssimo, uma verdadeira esteira de heróis em marcha. O nome do
livro, aliás, é “A Verdade em Marcha”. Mas ficou mesmo conhecido pelo petulante
título “J’Accuse!”, “Eu Acuso”, um título que Zola não escreveu, e sim o editor
do jornal que primeiro publicou a carta. O texto chegou à redação com o título
“Carta ao Sr. Félix Faure, Presidente da República”, e convenhamos, o editor
tinha razão em colocar lá em cima o “Eu Acuso”.
(Embora eu passe longe do sentimento que certos
intelectuais brasileiros nutrem pela prosa francesa, e apesar desse ser um texto
recheado de parágrafos imaginados em francês — e portanto maneirosos ao extremo
— de fato é uma das leituras mais empolgantes que faço em bastante tempo).
Antes de assumir a defesa pública de Dreyfus,
Zola já se sentia um membro da Academia, sagração máxima de um homem de letras
na terra de Victor Hugo. Embora jornalista, Zola cavou no paço literário uma
trincheira de onde lançava romances, polêmicos e de muito sucesso.
Mas Zola tinha outros defeitos, além do de ser
jornalista. O parecer de um médico vazou ao público, e o fato de que Zola era
“excessivamente emotivo” tornou-se motivo de troça.
E é aqui que interrompo o caminhão desenfreado
desta minha apreciação para uma pequena, mas vital, constatação. Zola, o
intelectual a quem foi negado quase tudo em vida, atirou-se na mais perigosa das
campanhas ao descobrir que sua amada pátria havia cometido o crime do
antissemitismo e aprisionado um homem justo.
Quantos de nós serão capazes de fazer o mesmo
em nome da verdade?
O que os nervos de Zola dizem sobre suas
atitudes?
Há no meio do texto uma descrição terrificante
dos cacoetes de Zola enquanto ouvia sua sentença. (Como para isso preciso ter o
livro em mãos, aproveito para passar o nome do autor da introdução: Henri
Guillemin).
“Ele morde o bastão da sua bengala, passa a mão
no pescoço, afasta ou sacode os dedos à maneira dos pianistas que temem cãibras,
enxuga o monóculo, agita a perna esquerda, ajusta o colarinho, olha no ar, alisa
o bigode, bate os joelhos, sacode a cabeça, crispa as narinas, vira-se para a
direita e a esquerda”.
Zola foi condenado a um ano de prisão e três
mil francos de multa. Além da liberdade, perdia também (para sempre) a chance de
ser um membro da Academia. Mais tarde escreveria que Dreyfus era “um judeu
crucificado”, em alusão ao Cristo, e que um cristão não poderia
abandoná-lo.
No fim, a persistência de Zola fez com que
Dreyfus fosse libertado.
Ele entrou para a história.
Não preciso dizer que certos casais mantém, um
do outro, terríveis segredos, sob a justificativa de preservar algo maior. Não
existe algo maior que a verdade.
A alguém, a verdade sempre interessa. Por isso
ela precisa ser dita. Sejamos nossos próprios Zolas. Manter segredos,
cultivá-los como orquídeas no escuro úmido de um canto da memória, fingir ser o
que não se é, em última análise, manter as aparências — isso é um crime
grave.
Sejamos os acusadores de nós próprios. Que
nossos ataques emotivos nos levem até a verdade, seja ela qual for.
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