O materialismo como visão de mundo é
vivido
por muitos como uma negação da
esperança
"So farewell hope and with hope,
farewell fear. And farewell remorse! All good to me is lost; Evil, be though my
good." John Milton, "Paradise Lost". (Então, adeus esperança e com a esperança,
adeus medo. E adeus remorso! Todo o bem para mim está perdido; Mal, seja então
meu bem).
Sim, enquanto existir esperança, não há paz.
Segundo o poeta inglês John Milton (século 17), que narra nesse poema a agonia
de Adão e Eva afundando na cegueira de quem não mais verá Deus, só perdendo a
esperança perde-se o medo. Seria um preço muito alto a pagar? Junto com a perda
do medo, a perda do remorso e do bem. Niilismo?
A esperança é tema nobre na teologia. Para os
católicos, a esperança é uma virtude teologal, isto é, só se deve depositar a
esperança em Deus e, por consequência, só Deus nos dá esperança como um dom. Não
há esperança no mundo, na Criação. Entregue a si mesma, ela vaga no vazio do
desespero, carregando em si a raça dos abandonados, como dizia Horkheimer.
Felizes os que nasceram com o dom da esperança.
Existe uma beleza no mundo que só os olhos daqueles que têm esperança
veem.
Eu, como nasci com uma alma cega, mui raramente
a pressinto (como diria Santo Agostinho, séculos 4 e 5, o peso do pecado logo me
traz de volta ao desespero), mas só a pressinto com a ajuda de alguém; por mim
mesmo, me afogo no desespero. Só não me desespero mais porque sou uma alma
concreta, salva pelas obrigações do cotidiano.
Que os inteligentinhos não me cansem com a
"crítica do pecado". Hoje em dia, uma das faces da banalidade é falar mal de
religião: mal informados de todas as idades acham que pecado é uma invenção para
"oprimir o homem", sim, assim como o espelho...
É conhecida a passagem na qual Kafka, ao ser
indagado sobre crer ou não que existiria alguma esperança, teria respondido:
"Esperanças há muitas, mas não para nós".
A interpretação mais comum é a de que ele
estaria condenando a modernidade e sua desumanização (a barata Gregor Samsa, em
"Metamorfose") como negação histórica da esperança, mas que nem por isso Kafka
negaria toda e qualquer esperança. A conclusão dessa interpretação é que o
pessimismo do autor seria "histórico", mas não ontológico ou cosmológico (isto
é, "passando" a modernidade, as coisas melhorariam...).
Mas a teologia de Kafka, presente em seus
"aforismas teológicos", parece ser um pouco pior do que isso. Mesmo em sua
ficção, Deus parece ser uma espécie de "senhor de uma colônia penal" (faço
referência aqui à máquina de tortura e morte descrita no seu conto "Na Colônia
Penal"), colônia penal esta que é nossa casa, poço de desencontros, nossa vida,
poço de frustrações, nosso corpo, poço de patologias, enfim, um beco sem
saída.
O próprio materialismo como visão de mundo
(modelo hegemônico na ciência e no ateísmo moderno, segundo o qual tudo é átomo
e a vida é finita) é vivido por muitos como uma negação da esperança. Como ter
esperança na solidão das pedras?
Um dos trechos mais sublimes na literatura, no
qual o materialismo se revela em seu terror e seu mistério, é a passagem no
romance "Patrimônio", de Philip Roth (a história real do adoecimento e morte de
seu pai), na qual ele vê as imagens do tumor no cérebro de seu pai, tumor que o
mataria.
Não por acaso nessa cena, Roth busca refúgio na
famosa passagem na qual Hamlet segura nas mãos o crânio de Yorick, o bobo da
corte, que o tinha carregado no colo tantas vezes, e se pergunta se é aquilo que
somos, um crânio em meio a terra úmida.
Roth olha para aquele cérebro e pensa como
"aquilo" poderia ser a causa eficiente de tudo que seu pai fizera, pensara e
sentira. Fonte de cada palavra e cuidado que tivera com sua família.
Lembro-me bem de quando eu trabalhava no
necrotério fazendo necropsias e colocava cérebros na mesa metálica. Milton,
Shakespeare, Kafka, Roth e eu juntos, num plantão de sexta-feira à noite, a
noite mais violenta, e por isso mesmo a melhor, se você quiser cadáveres
"frescos" para aprender anatomia. Farewell hope.
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Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/26/11/2012
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