Você não fica devastado quando vê alguém
feliz, que diz que gosta de si mesmo, não se arrepende de nada, entende o mundo
e o sentido da vida, não fica desgraçadamente arrasado quando escuta que alguém
é casado com a namorada da faculdade e é suuuuper feliz, foi fiel durante
décadas, tem a vida sexual como as de alguns personagens mitológicos, que chegou
a ter um caso no vigésimo ano de casado, mas foi perdoado e amado como nunca,
você não entra em pânico quando descobre que um amigo comprou móveis na baixa
que hoje valem 20 vezes mais, ações na baixa que vendeu antes da crise dos
derivativos, que aplicou numa empresa chamada Apple quando ainda se usavam
máquinas de escrever, que herdou uma fattoria à beira do mar na ponta da Bota,
de um tio italiano gay que foi o único a ficar na terrinha, não emigrar e que
não teve filhos, em que se colhem trufas brancas, que milagrosamente nascem ali,
e produz um vinho premiado por toda a Europa, não se choca quando sabe que
alguém foi promovido e passou a ganhar benefícios como cartão corporativo, plano
de saúde com helicóptero, carro do ano, secretária e sala com vista, ou que tem
gente que não precisa estudar para passar de ano porque basta prestar atenção,
ou que tem facilidade com línguas e fala entre outras russo correntemente,
entrou no vestibular sem cursinho, dorme como uma pedra, nunca toma remédios na
vida nem nunca fica doente, tem colesterol, glicemia, pressão e batimentos
cardíacos abaixo dos alertas, vai ao banheiro duas vezes ao dia, não engorda,
nem se jantasse pizza com borda recheada todas as noites, pois tem um bom
metabolismo, fuma eventualmente um cigarro a cada dois meses e nunca extrapola
esse cálculo, não tem cálculos renais, nem na vesícula, gordura no fígado,
artroses, bursites, tendinites, joga tênis com a galera mais jovem do clube,
porque sempre ganha dos tiozinhos da sua idade, tem um cachorro que não late
para visitas, nem tem pulgas, mas ataca todos os gatunos que se aventuraram por
seu bairro, que a casa em que mora nunca foi assaltada, a única da rua que nunca
foi, que não tem rugas, cabelos brancos, cera de ouvido, caspa, calos, pele
oleosa, unhas encravadas, joelhos tortos, pé chato, pernas em xis, joanete,
flatulência, hérnia de disco, herpes, mau hálito, incontinência, enxerga sem
óculos - nada de miopia, estrabismo ou estigmatismo -, lê bulas de remédio,
menus de restaurantes praianos especialistas em luaus iluminados por tochas,
partidas e chegadas de aviões, placas nas estradas, comprou casualmente quadros
de pintores brasileiros iniciantes que hoje estão expostos alguns na Tate e
outros no MoMA, costuma ser convidado para dar palestras motivacionais no
Caribe, Ilhas Fiji, Bali, Ilhas Maurício, Córsega, que comprou um apezinho no
Marrais quando o euro não valia nada, entrou de sócio numa fábrica coreana de
carros e numa fazenda de produtos orgânicos, leu Ulisses na escola, Proust no
original, quando terminou o curso de francês e se envolveu com seu caso
extraconjugal parisiense, toda obra de Balzac, A Divina Comédia, exemplar
raríssimo que encontrou empoeirado na sede da fattoria que herdou aparentemente
autografado pelo autor, Os Irmãos Karamazov, para praticar o russo, quando
entrou de sócio de uma petrolífera com um ex-agente da KGB, que hoje tem um time
de futebol no Reino Unido e partes de uma equipe de Fórmula 1, que se tornou seu
melhor amigo e é credenciado pela Fifa e Uefa a frequentar estádios da Copa do
Mundo e da Liga de Campeões da Europa, na tribuna dos dirigentes máximos da
entidade, e sempre sobra convites, você não fica absurdamente destroçado quando
tem alguém com bom senso para não entrar em brigas de trânsito, que dá passagem,
que jamais para em vagas de idosos e deficientes, que acena para ajudar
apressados na ultrapassagem, que não se importa quando o motorista de trás
aciona a buzina assim que o farol de trânsito muda do vermelho para o verde, que
nunca foi multado - e nas três vezes em que foi parado na blitz do bafômetro
tinha bebido suco de tomate, porque tivera um mau pressentimento -, que não se
estressa quando vê alguém furando a fila do cinema e simplesmente indica outro
caixa livre, que salga a pipoca como se cálcio em excesso fizesse bem para a
circulação, que tolera frutose, glicose e glúten, não tira a fatia de gordura da
picanha, que não se importa com a turma de garotos que erraram de filme e, num
denso drama argentino, comenta a baladinha da noite anterior e marca o ponto de
encontro da baladinha posterior, moços e moças que chacoalham sacos de pipocas
para misturar o sal como se estivessem na ala de chocalhos da bateria de uma
escola de samba do primeiro grupo, que não colocam celulares no silencioso e
que, ultimamente, você neurótico reparou, as telas touchscreen dos celulares e
tablets estão mais luminosas, porque nós, estressados, não aguentamos filme fora
de foco, ar-condicionado glacial em salas de cinema e teatro, atores que cospem
uns nos outros enquanto representam, muito menos o barulho de um saquinho de
delicado ou jujuba aberto, mas fica arruinado quando encontra alguém que saiba
configurar computadores em diferentes sistemas operacionais, até aquele
gratuito, que entende tudo de formulário da Receita Federal e está em dia com
ela, com o Estado e a prefeitura, com o condomínio e o da casa de praia, que
consegue tuitar e responder a e-mails ao mesmo tempo, tem Face Book, Instagram,
G+, Linkedin, What’s Up, as últimas versões dos aplicativos essenciais
atualizados, você não inveja absolutamente aquele que não tem cáries, canais,
implantes, dentes amarelados, que nunca ouviram que seria melhor consultar um
ortodontista, ou que escutaram "quando casar passa", e passou? Relaxa.
A boa notícia, e que nos dá um enorme consolo,
é que essa pessoa não existe. E a baixa filosofia ensina: se existisse, não
teria a sensação inigualável e prazerosa de aprender com os erros.
Como dizem os invejosos, errar é humano, e a
perfeição não existe.
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Escritor. Colunista do Estadão
Blog:
http://blog.estadao.com.br/blog/marcelorubenspaiva
Fonte:
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,inveja
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