Talvez prefiram acreditar em Deus. Mas o fato de ser
preferível não torna alguma crença mais verdadeira
Militantes antirreligiosos fizeram
circular uma mensagem audaciosa nos ônibus de Londres. "Provavelmente Deus não
existe", diziam os cartazes. "Então, pare de se preocupar e aproveite a
vida."
No livro "Unapologetic", publicado neste ano na
Inglaterra, o escritor inglês Francis Spufford critica a iniciativa. Como assim,
"aproveite a vida"? Em que mundo esses caras estão?
Imagine, diz ele, uma senhora de meia-idade,
com sua sacola de compras do supermercado, voltando para casa, onde irá
encontrar aquele que foi o homem de sua vida, agora tomado pelo mal de
Alzheimer, que acaba de espalhar mais uma vez suas fezes pela parede.
Ou então imagine o garoto numa cadeira de
rodas, com as pernas torcidas como um saca-rolhas pelos espasmos da doença, sem
poder falar; ele é capaz apenas de teclar suas mensagens no computador, mas isso
também está ficando cada vez mais difícil.
"Aproveite a vida?" Para Spufford, que responde
ao ateísmo de Richard Dawkins e Christopher Hitchens, quem criou esse slogan é
que vive no mundo da carochinha.
Adotou-se, diz ele, a mentalidade típica da
publicidade comercial: todo mundo é feliz, saudável e bonito e, se aparece
alguém de cabelo branco, é porque se trata de um daqueles anúncios de
aposentadoria privada, em que há muita disposição para os prazeres da "melhor
idade".
Spufford não é teólogo. Escreveu um romance de
ficção científica e ensaios sobre a história da tecnologia. "Unapologetic", que
poderia ser traduzido como "Sem Justificativa", ou "Sem Pedir Desculpa" (por ser
cristão), traz argumentos muito amigáveis, dirigidos a quem não vê sentido no
modo de vida religioso.
Como sou uma dessas pessoas, logo pensei numa
resposta aos exemplos da mulher de meia-idade e do menino de cadeira de rodas. É
cruel dizer-lhes para "aproveitar a vida". Mas também é duro dizer que um Deus
misericordioso quer que essas desgraças lhes aconteçam.
Mesmo assim, talvez até prefiram acreditar em
Deus. Mas o fato de ser preferível não torna alguma crença mais
verdadeira.
Os argumentos a favor e contra podem
estender-se, é claro. Constituem um dos principais temas de "Expresso do Pôr do
Sol", peça do norte-americano Cormac McCarthy, em cartaz no Tucarena até 25 de
novembro.
Ao longo de uma hora e pouco, dois excelentes
atores (Cacá Amaral e Guilherme Sant'Anna) discutem bravamente a questão. Mais
do que isso: Cacá Amaral, no papel de um professor universitário branco, acaba
de ser salvo de se atirar da plataforma de um trem.
É um ex-presidiário negro, convertido ao
cristianismo, quem o impede de se matar. No papel de "Black", Guilherme
Sant'Anna é um anjo de astúcia e vitalidade, tentando desmontar a descrença
furiosa de "White". Como bom ateu, o diálogo me pareceu desequilibrado a favor
de uma ótica cristã. A peça mostra bem os motivos biográficos que fizeram o
ex-presidiário abraçar a escolha "correta".
Os argumentos de "White" em favor do suicídio,
entretanto, são impessoais e vagos. Ele declara, por exemplo, que toda sua fé na
cultura e no progresso desapareceu "nas cinzas dos campos de extermínio"; sendo
toda esperança de felicidade uma mentira, o melhor é se jogar na frente de um
trem.
Evidentemente, nem todo ateu quer se jogar na
frente de um trem. A moral da história seria outra: sem acreditar "em alguma
coisa", você não consegue viver. O cristianismo pode ser essa "alguma coisa", e
certamente "Black" é feliz com sua religião. Livrou-me de um monte de encrencas,
diz o ex-presidiário. Certamente. Mas ainda falta escrever uma peça em que o
ateu, vivendo feliz seu modesto destino, tenta tirar o religioso das encrencas
em que ele se mete.
Imagine, por exemplo, um jovem homossexual que
renega seu amor por outro homem simplesmente pelo fato de que sua religião não
permite esse tipo de coisa. Ou a mãe que se recusa a abortar e gera um filho com
grave deficiência, quando poderia ter outro normal numa gravidez
posterior.
"Expresso do Pôr do Sol" não vai muito longe
nesse tipo de debates, que naturalmente varariam a madrugada toda. De todo modo,
para quem não está disposto a se atirar nos trilhos de um trem, não deixa de ser
um bom ponto de partida para a discussão.
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Colunista da Folha.
coelhofsp@uol.com.br
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