Giorgio de Chirico, Il figliol prodigo (1922)

A privatização da esfera privada

Definir com precisão o início e o conteúdo de uma nova realidade não é fácil. Principalmente quando ela ainda está em acto. O sociólogo Alain Ehrenberg, tentando fixar o início da revolução pós-moderna, em contexto francês, contou uma história algo dramática mas sugestiva. Na sua opinião, a pós-modernidade começou numa quarta-feira à noite, num Outono dos anos 80, quando uma certa mulher declarou num talk-show, diante de 6 milhões de telespectadores, que o seu marido sofria de ejaculação precoce. Por essa razão, ela nunca teve um orgasmo durante a sua vida matrimonial.

O que tem de revolucionário este episódio para justificar a escolha de Ehrenberg? Dois aspectos importantes. Pela primeira vez, algo tão íntimo e privado tornou-se público. As pessoas começaram a confessar aspectos que antes personificavam a privacidade. Em segundo lugar, o espaço público, de especial modo a televisão, tornou-se a nova ágora. A pós-modernidade privatizou a intimidade do Homem (veja-se o fenómeno do Big Brother).

Correr apressadamente sobre o gelo


O sociólogo polaco Zygmunt Bauman, autor que definiu a nossa era como a modernidade líquida, diz-nos que a consciência pós-moderna equipara-se ao despertar abrupto de um sonho para passar a um pesadelo. É famosa a metáfora do poeta Ralph Emerson (séc. XIX): «Na patinagem sobre o gelo fino, a nossa segurança está na nossa velocidade» (Essays). E assim é o nosso tempo. A desilusão face a promessas não cumpridas e o despertar de um sonho que nos obriga a correr rápido. Para onde? Não se sabe. Talvez para lado nenhum. O importante é não parar.

Quais são as consequências reais deste processo? Segundo Bauman é a liquidificação (em contraposição à modernidade sólida) da vida, do pensamento, do tempo e do espaço e dos laços humanos. Por isso, a pós-modernidade é uma consciência (da não reflexão) e um habitat que nos molda silenciosamente.

Ao fazer corresponder liberdade com emancipação, vários laços fundamentais foram desfeitos (veja-se Lyotard com a teoria do fim das metanarrativas). E aqui reside a angústia pós-moderna: eu sou livre. Livre das tradições, das leis, de tudo e até de mim mesmo. Mas essa liberdade atormenta-nos porque, acordando do sonho, percebemos que não era de liberdade que se tratava. E esse erro fez de nós solitários numa multidão de solitários, desvinculados uns dos outros.

A fragilidade dos laços humanos


Esta semana li no «Público» uma notícia que dava conta que 74 em cada 100 casamentos terminam em divórcio. Registou-se, todavia, pela primeira vez em cinco anos, uma queda percentual. Não por uma nova mentalidade mas porque simplesmente não há dinheiro para o processo de divórcio. A solução passa então por uma vida ilusória e instrumental. Dizia a advogada Rita Sassetti: «O que digo a muitos é que não se divorciem se não têm dinheiro. Fiquem a morar na mesma casa. Isso representa uma poupança. Não têm outra hipótese. Sou eu própria que lhes digo isso» («Público» 03 Nov 2012).

Alain Ehrenberg denunciava uma privatização da intimidade. Não estaremos aqui diante de uma privatização da felicidade? O caso não é sair de casa. O caso é desacelerar desta patinagem no gelo para equacionar o universo das relações humanas, dos compromissos e da fidelidade. É a montante que se equaciona a questão, a qual ultrapassa largamente o vector económico.

Outro importante filósofo francês, Gilles Lipovetsky, afirmava que «a fé no progresso foi substituída não pelo desespero nem pelo niilismo, mas por uma confiança instável, oscilante, variável em função dos acontecimentos e das circunstâncias». Instável, oscilante e variável. É algo transversalmente oposto a quanto incentivava Jean-Paul Sartre ao relembrar a necessidade de um projecto de vida. A segurança advém deste exercício: equacionar a vida na fidelidade a um projecto global.

Até há algum tempo atrás reinava a máxima carpe diem. Mas, hoje, o tempo é dominado, não pelo gozo do presente, mas pela inquietação diante de um futuro incerto e perigoso. E no desatar dos laços das grandes instituições, que ofereciam um sentido para a vida, pode encontrar-se, talvez, um culpado.

Uma palavra com sentido e sentimento

Marc Chagall, White Crucifixion (1938)

Veja-se outro exemplo concreto. O facto de se querer chamar ao pai e à mãe «genitor 1 e genitor 2». Como bem recorda Bauman, «as palavras têm significados: algumas palavras, contudo, também têm um sentir». Pai e mãe são algumas delas. Em caso algum, «genitor» é capaz de transportar a riqueza de conteúdo e de simbolismo que «pai e mãe» contêm. Gerar para a vida é apenas o início da paternidade/maternidade.
A Igreja também aqui deveria estar atenta. E até ser modelo. Sente-se no ar uma tentativa de reconfigurar a imagem de Deus, promovendo um «Deus-mistério», um «Deus absoluto, criador do Céu e da Terra». Certamente o é. Mas experimente-se ir a Mc 14, 36 e trocar «Abbá, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice!» por «Mistério, tudo te é possível; afasta de mim este cálice!» para se perceber que as palavras têm um significado e um sentir.

Só o pai (não genitor) sente a dor de um filho, só o esposo (não parceiro) sabe o que significa «um só corpo», só um lar (não casa) é que nos recebe com o tapete «bem-vindo». Mas quem vive no medo de partir o gelo, e não pára para pensar, nunca saberá o que é amar uma palavra que tem um sentido e um sentimento.

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* Padre. O segundo de três irmãos. Desde há um ano voei da “Roma portuguesa” para a Cidade Eterna. Estudo Teologia Pastoral. Corro, leio, escrevo... e rezo.

Fonte: http://www.patiodosgentios.com/tracos-do-quotidiano/um-pai-e-mais-que-um-genitor/ - Português de Portugal.