sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O Fim Da Metafísica,de Hélio Schwarstman *

 

 


Hélio Schwartsman*
Giorgio de Chirico. The archeologist, 1927. Óleo.
A função do médico é preservar a vida do paciente, de modo que qualquer conduta que vá contra esse princípio é condenável. Essa é uma ideia simples, cativante e errada. O mundo é um lugar bem mais complexo e nuançado do que sugerem nossos esquemas mentais.
É mais do que bem-vinda a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que faculta a pacientes registrar em seus prontuários os procedimentos aos quais não querem ser submetidos. Em tese, isso lhes permitirá evitar intubações, choques elétricos e outras técnicas invasivas que podem prolongar a agonia do doente terminal. É uma medida necessária, mas que chega com décadas de atraso e apenas arranha o problema das decisões de fim de vida.
A dificuldade maior é que as fronteiras entre a ortotanásia (não aplicar tratamentos fúteis, atitude que o CFM aprova) e a eutanásia (quando o médico toma medidas que aceleram o óbito, legalmente considerada um homicídio) são tudo, menos claras. Frequentemente, a fim de evitar que o paciente sinta dor, faz-se necessário elevar o uso de sedativos. Só que uma sedação mais profunda favorece o surgimento de complicações fatais. Se as drogas utilizadas forem da classe dos opioides, elas podem provocar diretamente uma parada respiratória. Em que medida o médico precipitou a morte? E, se não o faz, é legítimo deixar o paciente sofrer?
Tentar responder a esse tipo de questão é um exercício metafísico que até pode ser intelectualmente estimulante, mas que não produzirá critérios inequívocos de decisão.
Minha sugestão é que abandonemos toda metafísica e estabeleçamos de uma vez por todas que cada qual é dono de sua própria vida, podendo dela dispor como preferir. Isso significa que, se quiser, o paciente deve ter o direito de receber doses letais de sedativos e analgésicos. O bonito dessa solução é que, ao não impor crenças externas a ninguém, maximiza a liberdade de todos.
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*Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 31/08/2012

Livros,qualidade,quantidade,mortalidade e imortalidade


Jaime Cimenti
Em matéria de livros e de muitas outras coisas, acho que o tempo e os leitores-pessoas são os melhores juízes. Nada contra a crítica, as academias, os doutores. Há pouco tempo foram lançadas duas antologias de contos. Uma pretendendo apontar novos valores da literatura brasileira sob um ponto de vista, digamos, da qualidade.

A outra apresentava escritores de grande sucesso popular, sem, digamos, a preocupação de apreciações críticas etc. Debates aconteceram em torno dos livros, com opiniões diversas. Aqui não menciono o nome das antologias e dos opinadores por que acho que não vem ao caso, não precisa.

A discussão sobre qualidade, quantidade, popularidade, mortalidade, imortalidade e genialidade é mais antiga do que a Sé de Braga e, pelo visto, vai continuar. Até aí tudo bem, normal, universal, humano. Não dá para dizer, simplesmente, que autores que vendem muito são ruins e muito menos ficar estabelecendo critérios rígidos para dizer quem é artista e imortal.

Os leitores, o tempo e a liberdade devem se encarregar disso. Sim, claro, as academias e os doutores devem fornecer seus pareceres. Depois de Joyce, Kafka e Marcel Proust - só para citar alguns gigantes mais recentes das letras -, ficou complicado criar novidades em literatura e até falar a respeito.

Dizer que determinados autores são chatos, bons de ler, importantes ou desimportantes é coisa muito pessoal e qualquer juízo sobre isso é precário, acho, nesses tempos ditos pós-modernos. De mais a mais, têm leitores de dez anos, de oitenta e, claro, leituras que a gente faz em diversos períodos da vida, de forma diferente.

Portanto, acho válido opinar, selecionar e publicar antologias, novos autores, comentar, criticar etc. Só penso que nesses tempos é preciso, mais do que nunca, priorizar a liberdade das pessoas, da arte em geral e até do mercado. É preciso democracia, pluralidade. Está bem complicado ditar regras num momento em que todos estão tanto e tão bem informados.

Sim, todo mundo dita regras, fala tudo toda hora, em todo lugar, mas, vamos combinar, o tempo, especialmente, tem de fazer o papel dele. O tempo se vinga das coisas feitas sem a colaboração dele, sabiam? É isso, vamos botar datas e lugares nas opiniões e dar um tempo ao tempo, que ele sempre merece.
Jaime Cimenti

Lua azul Hoje – Segunda lua cheia do mês e a próxima só em 2015. Aproveite para amar..Ame muito..e deixe-se amar também...

" nós aprendemos a ver,texto de Fernando Reinach

                                        Nós Aprendemos a ver

                                                                          Fernando Reinach*






Se você passar o dedo na bochecha de um recém-nascido, ele vai girar a cabeça e tentar abocanhá-lo. Essa reação o ajuda a mamar. Esse comportamento vem programado no cérebro. Não depende de experiência prévia ou aprendizado. Mas ninguém aprende a falar se não ouvir outros falando. A língua que falamos depende da interação do cérebro com estímulos do meio ambiente.

Por anos, cientistas acreditavam que só características "culturais" (como fala e escrita) dependiam da interação do sistema nervoso com o ambiente. Características "biológicas", como reflexos, audição e até a visão, surgiriam ao longo do desenvolvimento de maneira pré-programada, em momentos precisos, sob controle dos genes.

Essa crença caiu por volta de 1970, quando dois cientistas, estudando primatas, demonstraram que o desenvolvimento da parte do cérebro que controla a visão (córtex visual) só se completa se os olhos enviam imagens ao cérebro.

Eles estudaram o desenvolvimento do sistema visual em animais em que um ou ambos os olhos eram tampados. Sem informação do globo ocular, a organização dos neurônios do sistema visual não ocorria direito. Até um certo momento (chamado de "fase crítica"), o sistema visual se desenvolve independentemente do funcionamento dos olhos, mas, se eles não enviam sinais na fase crítica, não há desenvolvimento normal da visão.

Essa descoberta, que rendeu o Nobel, demonstrou que o sistema visual dos mamíferos - uma característica biológica - não é determinado unicamente por fatores genéticos, mas depende de uma forma de aprendizado, obtido pela observação do mundo. Por isso é tão importante corrigir defeitos como estrabismo acentuado logo após o nascimento.

Agora cientistas húngaros demonstraram que a realidade é mais complexa. Descobriram que a fase crítica não ocorre em momento determinado, mas depende dos estímulos que o cérebro recebe. Eles estudaram o aparecimento da capacidade de integrar a imagem oriunda de cada olho. Ela surge por volta dos 4 meses de idade, durante o período crítico, e permite que o cérebro combine a informação gerada em cada olho, produzindo uma imagem tridimensional. Antes dos 4 meses, o cérebro reage de uma única maneira, independentemente de as imagens apresentadas a cada olho serem iguais ou diferentes. Após os 4 meses, o cérebro passa a reagir de modo diferentes, dependendo do caso. Nessa idade a criança começa a reconhecer as faces e expressões faciais dos pais, demonstrando que o sistema visual está maduro.

Os húngaros se perguntaram se o período crítico ocorre em um momento fixo, determinado geneticamente, ou se pode ser alterado, dependendo de quando o cérebro começa a receber sinais dos olhos. Eles determinaram o momento em que 15 crianças nascidas com 9 meses de gestação passam pelo período crítico e compararam com dados obtidos com 15 crianças prematuras. O resultado mostra que o período crítico ocorre 4 meses após o parto, independentemente do tempo de gestação. Ou seja, o momento em que passamos pelo período crítico não depende só de eventos ditados pelos genes, mas pode ser alterado se o cérebro recebe informação dos olhos mais cedo.

Essa descoberta é importante, pois demonstra que a interação com o ambiente tem um papel maior que o imaginado. O processo de visão é parte determinado geneticamente, parte determinado pelo meio ambiente. A linha que separa comportamentos derivados de processos biológicos dos derivados de processos culturais está ficando difusa. Será que nascemos com o dom da visão ou aprendemos a ver quando abrimos os olhos?

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* BIÓLOGO, MAIS INFORMAÇÕES: EARLY ONSET BINOCULARITY IN PRETERM INFANTS REVEALS EXPERIENCE-DEPENDENT VISUAL DEVELOMENT IN HUMANS. PROC. NATL. ACAD. SCI. USA, VOL. 109, PÁG. 11.049, 2012

"Qualidade da Educação", M.Tereza Lunardini Cardoso*


ARTIGO - MARIA TEREZA LUNARDINI CARDOSO*

Qualidade da educação

Não há dúvida de que o Brasil potencializou-se através do esporte. No futebol, conquistou várias copas mundiais. No automobilismo, subiu ao pódio com o imortal Ayrton Senna. Nas olimpíadas, muitos atletas brasileiros vêm se consagrando vencedores e ostentando medalhas no peito. No vôlei, na natação e em outras modalidades esportivas, o país já venceu os “invencíveis”. Na economia, o Brasil passou de devedor a credor do FMI. O mercado internacional abriu as portas para os produtos brasileiros.

Na educação, o Brasil deu a largada; já venceu a barreira da quantidade – mais de 95% das crianças já estão nas salas de aula. Muitos governantes estão conscientes de que investir em educação infantil é garantir um futuro promissor para muitos pequenos brasileiros; já entenderam que “as flores do futuro estão nas sementes de hoje”.

No entanto, o Brasil não conseguiu erguer a bandeira da vitória: os resultados da educação brasileira não são alentadores. Os índices de evasão, de repetência e a qualidade do ensino são incompatíveis com os avanços que o país vem conseguindo nesses últimos anos. Na última edição trienal na prova do programa de Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa), referente a 2009, o Brasil ficou no 54º lugar num ranking de 65 países.

Segundo o Inaf (Indicador do Analfabetismo Funcional), os índices de analfabetismo apresentaram declínio nos últimos anos. No entanto, os níveis da avaliação externa sobre as habilidades de leitura e escrita e matemática dos brasileiros entre 15 e 64 anos ainda são preocupantes. Avaliar a situação dessa população-alvo quanto à capacidade de acessar e processar as informações escritas como ferramentas para enfrentar as demandas cotidianas indica que não basta codificar e decodificar palavras ou expressões.
Ler e entender diferentes gêneros de textos que circulam socialmente, escrever com clareza e com domínio das noções básicas da língua escrita são hoje condições imprescindíveis para a inserção plena na sociedade letrada. São também requisitos básicos para a promoção pessoal e para conquista de um espaço no mercado de trabalho.

Indiscutivelmente, a educação é o alicerce para o progresso do país; é, portanto, o grande passaporte para o sucesso individual e para a construção do desenvolvimento coletivo de uma nação. É preciso dar a grande largada para o Brasil concorrer em nível de igualdade com as outras nações do mundo e dar a tão sonhada volta olímpica, ostentando a bandeira da vitória na educação.
*PROFESSORA, MESTRE EM EDUCAÇÃO

                                                           DAVID COIMBRA

                              Roubaram a cidade

O shopping existe para substituir a cidade perdida. Houve um tempo em que as cidades eram das pessoas. Dos cidadãos. Agora, as cidades foram roubadas. Então, os shoppings se ergueram do chão.

Os shoppings são algo além do que “templos de consumo”, como chamam. Os shoppings são símbolos. Quanto mais shopping, menos cidade.

Não é por acaso que Porto Alegre é florescente em shoppings. Porto Alegre foi roubada dos porto-alegrenses. Esse é o maior crime dos bandidos que espreitam os motoristas debaixo de semáforos ou sob as sombras das árvores, nas portas dos edifícios, nas esquinas sombrias.

Eles tiraram a cidade das pessoas. Os porto-alegrenses sentem medo de caminhar nas ruas, e uma cidade só existe, de fato, se as pessoas podem caminhar por suas ruas. Quando as pessoas caminham, exercem sua humanidade, porque elas se veem e se encontram e trocam experiências.

Verdade que algumas cidades foram concebidas para o automóvel, não para as pessoas. Como Brasília. Brasília é um monumento à burrice urbanística. Ou não. Ou a coisa foi premeditada. Construíram Brasília de forma ardilosa, para que os homens do poder ficassem a salvo dos humores da população.

Na antiga capital, o Rio, há muito povo por toda parte. Em Brasília, não. Brasília é asséptica, apartada do homem comum. O povo é considerado tão inoportuno em Brasília que mal consegue se deslocar de um lado para outro, devido ao péssimo serviço de transporte público.

Vi algo parecido em Joanesburgo, um portento de cidade, com 5 milhões de habitantes e cem quilômetros de extensão entre uma ponta e outra. Mas é uma cidade praticamente sem transporte público. Os ônibus são raros, os táxis são inconfiáveis. Por que Joanesburgo é assim? Porque QUIS ser assim. No tempo do apartheid, ninguém se importava com quem não tinha carro. Os negros pobres que se virassem. Joanesburgo ainda sofre com os resíduos do apartheid.

Brasília também. Só que, em Brasília, não é o branco que se aparta do negro; é o poderoso que se faz inalcançável. E, em Porto Alegre, o apartheid se dá às avessas. O contribuinte que vive “dentro” da lei perdeu a cidade para o fora da lei. Fugiu da rua. Não toma mais mate nas calçadas, como faziam os meus avós.

Não interage com o vizinho. Não atravessa a rua para ir à venda. Não. Trancou-se atrás das grades da própria casa, feito um detento voluntário, e, quando sai, desliza pelas ruas em seu carro com película e tranca automática, olha desconfiado para os lados e se homizia... nos shoppings. O porto-alegrense foi banido para os shoppings, onde as pessoas podem caminhar e se ver e se encontrar. Como deveria acontecer em toda cidade.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

" O Silêncio da Alma ", escreveu Neale Donald Walsch

Lembre-se os silêncios
mantem os segredos,
pronto o som mais doce,
é o som do silêncio...
 
Essa é a canção da alma
Alguns escutam o silêncio na oração,outros cantam a canção em seu trabalho,
alguns procuram os segredos na contemplação tranquila...
 
Quando se alcança a maestria,os sons do mundo se apagam,
as distrações se aquietam
Toda a vida se transforma em  meditação.
 
Tudo na vida é meditação.
Na qual se pode contemplar o Divino e vivendo dessa forma,
aprendemos que tudo na vida é bênção.
Já não há luta nem dor,
nem preocupação,só há experiência.

Respira em cada flor,voa com cada pássaro,encontra
beleza e sabedoria em tudo,já que a sabedoria está em todos os lugares,está em
todos os lugares,sim,onde se forma a beleza.
 
E a beleza se forma em todas as partes,não há que procurá-la,porque ela virá a ti!
 
Quando ages nesse estado transformas tudo o que fazes numa meditação,e,assim,nem dom,nem oferecimento,de ti para tua alma e de tua alma para o TODO.
Ao respirar respira longa e profundamente,respira lenta e suavemente,respita...
respira a suave e doce simplicidade da vida,tão plena de energia,tão plena de amor.
És o amor de Deus,o que estás respirando.
 
Respira e poderás senti-lo.
Faz de tua vida e de todos os acontecimentos uma meditação,caminha na vigília e não adormecerás,em vão.

Antonio Prata,é o autor de " Na Maciota " ...



Antonio Prata

Na maciota

Passei os últimos 7 dias com um Nike Air, tão aprazível às juntas quão desagradável à visão, diz minha mulher

NO MEIO da adolescência, tendo em vista uma maior valorização de minha pessoa pelo sexo oposto, resolvi implementar algumas melhorias no layout e abri mão do conforto em nome da estética. Troquei os moletons pelos jeans, aposentei o relógio com joguinho e, mais difícil, abandonei os deliciosos tênis esportivos, passando a usar calçados com proposta:

All Stars, Adidas vintage, Pumas invocados, sapatênis e outros modelos cheios de conceito e sem nenhuma tecnologia de entressola. Foram 20 anos castigando as juntas em nome do coração, batendo os calcanhares contra a rígida crosta terrestre, só para tentar me mostrar um pouquinho mais atraente às mulheres -o que a gente não faz por amor?

Não sei se foi o aprimoramento de minha "identidade visual" -como dizem os publicitários-, o amadurecimento interior, o curso natural da vida ou tudo isso junto, só sei que funcionou. Longe de ter me tornado um Don Juan das Perdizes, mas consegui perder a virgindade (para nunca mais encontrá-la -pelo menos não em mim), tive algumas namoradas, depois casei.

E foi uma sensação de comezinha plenitude, uma cotidiana paz interior que me levou, semana passada, de volta aos tênis esportivos. Depois de duas décadas sem moleza -literalmente-, passei os últimos sete dias calçando um Nike Air de corrida, cinza e amarelo, tão aprazível às juntas quão desagradável à visão -segundo minha mulher.

Ela está preocupada: não só com a feiura desses tênis, de cores berrantes e cheios de faixas refletoras -desenhados mais para impedir um atropelamento na beira da estrada do que, digamos, para serem exibidos no Spot-, mas com o que virá depois. Moletom? Roupão aos domingos? Bigode? Pijama na padaria? Rider, Deus do céu?!

Ontem, minha irmã me ligou. Sempre defensora da elegância e solidária à minha mulher, queria saber dos detalhes. "É dos coloridos?", "Não, não, branco é pior ainda!", "Cê usa como, com jeans? Sei... E a meia, de que cor? Nossa...", "E se você usasse só dentro de casa?", "Eu tô falando é pelo seu bem!", "Tá, pela Julia, então! Pensa na Julia! Cê acha que é legal ela se arrumar toda e sair por aí com um marido de tênis de corrida?!".

Estou vivendo dias contraditórios. Sinto-me feliz e culpado, como um fumante que retoma o cigarro após anos de abstinência. Sinto-me reconfortado e aflito, como o divorciado que, fraquejando, volta ao casamento problemático. Estarei eu me libertando dos grilhões da moda ou me atolando na areia movediça da preguiça? Seria esse um movimento de independência ou apenas mais um passo em direção ao Homer Simpson que aguarda a todos os maridos depois de alguns anos de casado?

Não sei, mas acho que vale a pena insistir e ver no que dá. A cada dia, caminhando pela calçada, dando aquela corridinha para atravessar a rua ou mesmo parado, numa fila, passando o peso de uma perna para outra, tenho mais certeza de minha opção.

Do pó viemos e ao pó voltaremos: que possamos ao menos, entre o corpo e a terra, colocar os anteparos necessários para amaciar a jornada. A vida já é curta, meus amigos, não precisa ser dura também. E que venha o moletom! (Brincadeira, amor, brincadeira...)

antonioprata.folha@uol.com.br

...tudo o que recebe atenção, cresce...

 



Karina*
Resistir aos pensamentos negativos
é apenas mais uma maneira
de prestar atenção a eles…
E tudo que recebe atenção, cresce!
Nas sábias palavras de Jiddu Krishnamurti:
Não é bom tentar polir a estupidez, tentar ficar mais inteligente. Primeiro, devo saber que sou estúpido, que sou idiota. A simples consciência de minha estupidez me livra dela. Ao dizer ‘Eu sou idiota’ você estará se mostrando observador; não será mais um idiota. Mas se resiste ao fato de que é, então sua estupidez persiste. Neste mundo racional, a glória é ser muito inteligente, muito esperto, muito complexo, muito erudito, mas a erudição não tem nada a ver com inteligência. Para vermos as coisas como elas são, para entendermos o que realmente somos sem nenhum conflito precisamos da estupenda simplicidade da inteligência.”

Uma observação minha:
É importante que não se confunda a proposta de Krishnamurti com uma auto-depreciação, ou que se pense que as pessoas com baixa autoestima são mais “autoconscientes” do que as outras. Não, não e não! Muito cuidado com o “orgulho negativo” (“eu não sou nada, eu não sou importante”, “não sou bom o suficiente”, etc), que muitos tendem a confundir com humildade, ou quando excessivo, com baixa autoestima. Humildade de verdade é um auto-reconhecimento sincero de suas potencialidades e limitações, que não depende da avaliação de outros. A simplicidade da inteligência de que Krishnamurti nos fala é a de uma inteligência inocente, sincera, clara, humilde no sentido que expliquei acima, que aceita o “ruim”: não que o evita (tentando fazer o contrário, mas indiretamente focada nele) ou que se identifique com a ideia de que “é o ruim” ou só “é o ruim”. É a aceitação consciente de um aspecto da sombra, que pelo fato de ser reconhecido e aceito, deixa automaticamente de ser “sombra”, e portanto, de ser um obstáculo inconsciente na sua evolução.
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* Sou a editora do site InconscienteColetivo.net.
Fonte: http://inconscientecoletivo.net/29/08/2012

" Meu Pai e os monges de Myanmar


Meu pai e os monges de Myanmar

No hospital, no início da derradeira jornada, meu pai me deixou uma incumbência. Ainda na emergência aguardando diagnóstico, eu procurava acalmá-lo. Com o pensamento confuso, ele tentava tomar providências práticas, dinheiro, seguro de saúde.

Entre as últimas preocupações que conseguiu enunciar, ficou a pergunta, que fez com olhos já foscos: “e os monges de Myanmar?”. Frente à nossa impotência, à mercê do corpo que falia, só me cabia responder: “Deixa que cuido deles!”. Fiquei devendo essa parte e, como sempre, quando se perde o pai, tantas outras.

Era agosto de 2007, faz agora cinco anos. A notícia candente da ocasião era o engajamento dos monges budistas nos protestos pela situação cronicamente precária desse minúsculo e instável país no sul da Ásia. Era tocante a imagem daqueles homens pacíficos, em suas vestes laranjas, enfrentando as potências armadas.

Meu pai vivia o noticiário como algo pessoal. Uma posição compreensível para um sobrevivente da II Guerra. Ele teve a família destruída, o pai e o irmão assassinados em Auschwitz, pela má avaliação política que muitos judeus húngaros fizeram. Subestimando a ascensão do nazismo em seu país, deixaram de fugir a tempo. Dali em diante, a conjuntura nunca mais o pegaria com as calças na mão, espero ter aprendido isso com ele.

Lembrei de tudo isso ao ler o recentemente reeditado livro de memórias de Philip Roth: Patrimônio: Uma História Real (Companhia das Letras, 2012), que narra a etapa final da sua vida com o pai. Ao saber do tumor que mataria Herman Roth, então com 86 anos, o filho Philip foi incumbido de dar-lhe a notícia, ou pelo menos as informações necessárias para conduzi-lo à consulta com o neurocirurgião. A caminho desse encontro, o escritor errou um cruzamento e foi, num lapso, parar no cemitério onde repousava o corpo da mãe.

Conduzido pelo inconsciente, desceu, contemplou o túmulo que receberia o pai e ponderou... sobre a vida! A sobrevivência quase birrenta do seu pai – “Ele e a vida vinham juntos de muito longe” – sua compulsão a narrar o tempo todo – “Você nunca deve esquecer nada!” , sempre dizia – marcaram Philip Roth, que tampouco pôde deixar de contar histórias para viver.

Também aprendi que, mais do que a morte, é a vida a grande surpresa. A mensagem final do meu pai foi que para mantê-la é preciso olhar em volta, entender o que se passa. Observando o mundo, seus políticos, soldados e os monges de Myanmar, talvez possamos sobreviver e fazer alguma diferença. Disso posso cuidar.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

VOAR,de José Tolentino Mendonça

                



José Tolentino Mendonça*

Sei de uma jovem que voa. Chama-se Natsumi Hayashi, é fotógrafa e vive em Tóquio. Digo que ela voa, por ver as suas fotografias, de que gosto tanto. A bem dizer não tenho outras provas. Mas nas suas fotografias, acreditem, ela está sempre a voar. E são muitas centenas de imagens, a horas diferentes, em lugares distantes. Onde quer que se faça ver, Natsumi Hayashi levita, como se pudesse deslocar-se em voo. Às vezes surge um registo por dia, no esplêndido diário, em forma de blogue, que ela mantém. Se quiserem ir espreitar, o endereço é o seguinte: http://yowayowacamera.com/ . Quem lá for fica a saber que esta conversa é a sério e passará a conhecer alguém que voa.


Às vezes perguntam-me onde é que no mundo está a poesia. Acho que todos sabemos como o mundo pode ser um lugar prosaico e violento, sem fulgor nenhum, uma máquina de tortura para as questões do espírito, uma parede implacável que nos derruba. Mas não será apenas isso o mundo. E mesmo quando ele se parece reduzir dolorosamente a isso, não podemos esquecer que todos os dias ele é salvo. A mim faz-me bem reler o poema que Jorge Luís Borges escreveu sobre aqueles que salvam o mundo. Chama-se “Os justos”:

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«Um homem que cultiva seu jardim, como sugeria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo».


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No sentido do poema de Borges, eu não tenho dúvidas que as fotografias de Natsumi Hayashi estão a salvar o mundo. O primeiro juízo que se faz sobre elas é que são estranhas. Olhamos repetidamente para perceber o que nelas acontece, como é que a situação que relatam foi produzida, essas coisas. É verdade, que se pode arrumar depressa o assunto dizendo: “está bem, é uma miúda aos pulos em contextos diversos de um quotidiano urbano, nada mais”. Porém, dizer isso, anula o trabalho de restauração do mundo que está a ser posto em prática. As imagens de Natsumi Hayashi documentam o sonho que todos temos, pois como Ícaro, o herói grego, também nós aspiramos por sair do nosso labirinto. Ícaro experimentou sair com umas asas de cera e penas fabricadas por Dédalo, seu pai. E nós? A história humana, a grande e a pequena história humana, não passa de um estaleiro imenso ao serviço da invenção de asas. Natsumi Hayashi como que nos ajuda a pedir: “O voo nosso de cada dia, nos dá hoje”. É uma oração necessária. Sim, é possível a cada um de nós erguer-se do peso das coisas, transcender-se, perfurar a cápsula de penumbra e desânimo que se abate sobre a vida, elevar-se, recolocar-se perante a linha límpida do horizonte.
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* Teólogo. Escritor. Poeta

" O Valioso Tempo" autor : Mário de Andrade

O Valioso Tempo
Mário de Andrade
 
  
Contei meus anos e descobri
que terei menos tempo para viver
daqui para a frente do que já vivi até agora...
Tenho muito mais passado,
do que tenho futuro...
Sinto-me como aquele meninos
que ganhou uma bacia de jabuticabas...
As primeira,ele chupou displicentemente
mas percebendo que faltam poucas, rói o
caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades!
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.
Inquieto-me com invejosos
tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares,
seus talentos e s ua sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis
para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias
que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas
que apesar da idade cronológica são imaturos.
Detesto fazer acariação de desafetos
que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral...
As pessoas não debatem conteúdo
apenas rótulos!
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos ,
quero a essência
minha alma tem pressa
Sem muitas jabuticabas na bacia!!!
Quero viver ao lado de gente humana
muito humana,humanística...
que sabe rir de seus tropeços...
que não se encanta com triunfos,
não se considera eleito antes da hora,não foge de sua mortalidade!
Só há que caminhar perto de coisas e pessoas
de verdade!!! Verdadeiras.
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim basta o essencial.
Autor: Mário Quintana.

" Preenchimentos :- Martha Medeiros


Como toda mulher, também gasto alguns minutos em frente ao espelho com as mãos espalmadas no rosto tentando imaginar como seria se eu puxasse um pouquinho aqui, um pouquinho ali, mas nunca fui além da simulação – ainda não tive coragem de enfrentar o bisturi. Amigas aconselham: não precisa partir para algo radical, faça apenas um preenchimento, ora. Toda mulher moderna e inteligente faz, mas não gosto nadinha da ideia de injetarem no meu rosto coisas assustadoras como polimetilmetacrilato ou ácido hialurônico.

Outro dia, uma moça me explicou como o dermatologista, depois da aplicação, ficou moldando a substância com os dedos até que se assentasse no lugar certo. Quase passei mal. Não deviam contar esses detalhes para mulheres impressionáveis. E, como se não bastasse eu ser de outro século, ainda deparei com as fotos da mãe do Stallone. Aí, ferrou.

Preenchimento estava na minha lista de resoluções para 2012. Também esteve na de 2009, 2010 e 2011. Acaba de ser adiada, mais uma vez, para 2013 ou 2014, dependendo da minha capacidade de evoluir. Enquanto esse dia não chega, vou continuar me preenchendo com material obsoleto como livros, filmes, exposições, teatro. Não irão me deixar mais jovem nem mais bonita, mas ao menos o cérebro não ficará flácido. Como bem lembrou, recentemente, a linda atriz Aline Moraes, “a beleza pode desmoronar quando se abre a boca”.

Mudando de assunto, mas nem tanto, também me abismei com os erros de português que foram detectados nas legendas da propaganda eleitoral na TV, em que se viram preciosidades como “ensentivo”, “disperdiço”, “trofel”, “concurço” e “pulitica”, palavras que não possuem nem de longe o grau de dificuldade de um polimetilmetacrilato. Cheguei a iniciar uma crônica, mês passado, sobre esse assunto: escrever errado todos escrevem, eu erro, tu erras, ele erra. Não depõe contra o caráter de ninguém, mas não se pode relaxar.

É preciso continuar estudando, ler mais, consultar dicionários. Não cheguei a publicar a crônica porque ela foi inspirada nos bilhetes deixados pelo bioquímico que assassinou a mulher e o filho na zona sul de Porto Alegre. Diante de uma tragédia daquela magnitude, não cairia bem falar dos assassinatos gramaticais que ele também praticou. Eram tragédias incomparáveis. Mas a mim doeu tudo.

(Sei lá como se escreve.) Quem de nós, durante um bilhete, um e-mail, um tuíte, não colocou essa frase entre parênteses diante da dúvida sobre como escrever uma palavra difícil ou uma expressão estrangeira? Então, para não encerrar essa crônica com tragédia, e sim com tragicomédia, dê uma espiada no site http://seilacomoseescreve.tumblr.com/page/2 e divirta-se. Rir também rejuvenesce – e não dói.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

" Contos de Solidão e Silêncio,de Luiz Antonio de Assis Brasil



Guilherme Cassel inaugura-se na literatura com Contos de Solidão e Silêncio (Editora Bestiário), um livro “pronto”, para o qual não é preciso ter a condescendência habitual para com os novatos.

O silêncio do título, aqui, pode ser entendido de duas formas: tanto é o silêncio das personagens (que abdicam de falar) quanto o silêncio como veladura das intenções narrativas – quanto a esse aspecto, Guilherme Cassel é mestre em ocultar-nos a essência do que deseja dizer, apostando no subtexto à Hemingway. As “pistas” que o autor deixa aqui e ali são capazes de montar o seu arcabouço de intenções.

Não se pense, porém, que os contos demandem um leitor privilegiado em cultura e capacidade intuitiva. Qualquer leitor poderá entendê-los, e isso é uma verdadeira proeza literária. Mais uma vez lembramos o sentido da medida, revelador da consumada capacidade técnica do autor: nem o texto pode ser escancarado, nem pode ser críptico. O primeiro gera o tédio; o segundo, a perplexidade e a sensação do logro.

O silêncio das personagens decorre de algo íntimo – como o silêncio da viúva de Ruínas –, mas igualmente de um sentimento coletivo e atávico: “Quem vive no Sul, quando envelhece, naufraga em silêncios. Aos poucos, vamos aprendendo a desconfiar das palavras, a evitar a ilusão do entendimento. É quando a memória se apodera da vida e nos inunda com seus cheiros, texturas e fantasmas; quando, enfim, compreendemos que ficamos sós”. Eis aí, na abertura do conto Sul – em alusão a Borges – um dos tantos exemplos dos silêncios e das solidões do livro.

As personagens de Guilherme Cassel vagam sempre numa iminência, simbolizada pelo evento que não acontece, aquele evento transcendental que irá tirá-las do abandono, da culpa. Isso acontece com o protagonista-narrador do excepcional Feliz Aniversário, um assaltante para quem o fruto do crime é para revigorar um afeto, o único que o prende à vida e é capaz de justificar suas ações – mas se trata de uma felicidade efêmera, que amanhã será substituída, mais uma vez, pela dureza do real.

Da leitura de Contos de Solidão e Silêncio ficam algumas conclusões. A primeira, insofismável, é: a literatura brasileira ganha um novo e excelente autor; a segunda é que é possível, recolhendo elementos do dia a dia, transformá-los em motivo de discussão sobre este ente tão complexo, contraditório e, por fim, extraordinário, que é o ser humano.

"O que nos justifica é a nossa história "- Marina Gold


                                                    Marina Gold
Fernando Pessoa, que admiro imensamente, bruxo da linguagem e das emoções, quem define com irretocável coragem e clareza: "o homem é apenas um cadáver adiado". Vamos, sem qualquer inclinação para a morbidez, encarar a dura verdade dessa ideia - o que nos justifica é a nossa história, o enredo que fomos tecendo do passado para o futuro na posição nem sempre cômoda do presente.

Pegando carona na lucidez do poeta, peço a liberdade de ampliar a reflexão. Nossa inexorável finitude nos conduz por passagens cuja amplidão ou estreiteza já não se relacionam mais com os aspectos físicos do universo. Caixões e sepulturas, tumbas e jazigos não são amplos ou claustrofóbicos por conta de mármore ou madeira de lei. Pouco importa sua estrutura material, a realidade dali é bem outra, distinta dos tolos valores do nosso mundinho, transcendente, literalmente de outra natureza.

Essa constatação, tranquila para muitos, é inaceitável para tanta gente, algemada às ilusões, escrava de qualquer pitadinha mixuruca de pó de ouro, assimilar que a Inteligência Universal está distribuída em tantas outras coisas - olhos e olhares - bem mais importantes e valiosas a ponto de não poderem ostentar penduradas, acintosamente, uma etiqueta com preço.

Pena é constatar como esse entendimento, fundamental para se viver uma vida autêntica, avança com lentidão de tartaruga pelo terreno minado do materialismo vazio e midiático da nossa desvalida época. Até quando as pessoas vão relutar em entender que as crianças são mais importantes do que os berços, os óvulos mais importantes do que os diamantes? Até quando vamos saber o preço de tudo e o valor de nada?

Tenhamos esperança. Tartaruga é bicho aguerrido e cascudo. Aguenta calores e marteladas com seu casco de pura beleza. A ponta da ciência contemporânea indica inquestionavelmente que somos apenas reles indivíduos de uma gigante porção de espécies com quem compartilhamos o mistério da vida no planeta.

Planeta em torno de uma entre tantas e tantas estrelas da nossa galáxia. Galáxia, note-se, de periferia, ladeada por bilhões de outras similares na imensidão cósmica. Diante de tanto gigantismo, vão insistir que a música e o riso (aberturas para o mistério) valem menos do que a bolsa e as bolsas, de valor e de grifes. Tenham paciência!

                                                     

                                                   Nietzsche - fragmentos...



Olhar distanciado em Vik Muniz e Nietzsche

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Para ilustrar os trechos de Nietzsche, em a Gaia Ciência, trago a arte de Vik Muniz, que ao trabalhar com objetos fragmentados dos mais variados - do lixo aos grãos de areia - fotografando-os em uma perspectiva distanciada, brinca livremente com a estética, deixando entrever uma suave crítica ao conceito do belo.
Ocasionalmente, precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós; precisamos descobrir o herói e também o tolo que há em nossa paixão do conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando, para poder continuar com a nossa sabedoria! (NIETZSCHE, 1882, p. 132)

Esse monte faz encantadora e significativa a paisagem que domina: após haver dito isso muitas vezes para nós mesmos, somos de tal forma insensatos e agradecidos para com ele, que acreditamos que, proporcionando esse encanto, ele deve ser a coisa mais encantadora da paisagem – e assim o escalamos e nos decepcionamos. De repente ele próprio, e toda a região em torno e abaixo de nós, é como que desencantado; esquecêramos que algumas grandezas, como algumas bondades, pedem para ser vistas a uma certa distância, e de baixo não de cima – apenas assim têm efeito. Talvez você saiba de pessoas, à sua volta, que devem olhar para si mesmas apenas de alguma distância, a fim de se achar suportáveis, ou atraentes e animadoras. O autoconhecimento não lhes é aconselhável. (NIETZSCHE, 1882, p. 67)

Compreensão das Escrituras,interessantíssimo,é de Santo Agostinho*

                                          Prece pela compreensão das Escrituras

Santo Agostinho*

Há muito que desejo ardentemente meditar na tua Lei, e nela confessar-te a minha ciência e a minha ignorância, os primeiros vislumbres da tua iluminação e os vestígios das minhas trevas, até que a fraqueza seja devorada pela fortaleza. E não quero que se percam em outra coisa as horas que me ficam livres das necessidades do alimento do corpo, e da aplicação do espírito, e do serviço que devemos aos homens, e que não devemos, e todavia, lhes prestamos.
Senhor meu Deus, escuta a minha oração e que a tua misericórdia atenda o meu desejo, porque não é em meu benefício somente que ele se inflama, mas pretende ser útil ao amor fraterno: e tu vês no meu coração que assim é. Ofereça-te eu em sacrifício o serviço do meu pensamento e da minha língua, e dá-me tu aquilo que hei-de oferecer-te. Pois eu sou pobre e necessitado, tu rico para com todos os que te invocam e, embora isento de cuidados, tomas-nos a teu cuidado.
Suprime dos meus lábios, dentro e fora de mim, toda a temeridade e toda a mentira. Que as tuas Escrituras sejam para mim castas delícias, que eu não me engane nelas, nem com elas engane os outros.
Senhor, escuta-me, e tem compaixão de mim, Senhor meu Deus, luz dos cegos e força dos fracos e, ao mesmo tempo, luz dos que vêem e força dos fortes, escuta a minha alma, e ouve-a clamando do fundo do abismo. Pois se os teus ouvidos não estiverem também presentes no abismo, para onde iremos? Para onde dirigiremos o nosso clamor? Teu é o dia e tua é a noite: a um aceno teu, os instantes voam.
Concede-nos, então, tempo para meditarmos nos segredos da tua Lei e não a feches aos que batem à sua porta. Nem em vão quiseste que se escrevessem os mistérios obscuros de tantas páginas, ou esses bosques não têm os seus veados que neles se abrigam e recompõem, passeiam e se apascentam, se deitam e ruminam. Ó Senhor, aperfeiçoa-me e revela-me esses bosques. A tua voz é a minha alegria, a tua voz suplanta a afluência de prazeres. Dá-me o que amo: pois eu amo, e isso foste tu que mo deste. Não abandones os teus dons, nem desprezes esta tua erva sequiosa. Que eu te confesse tudo o que encontrar nos teus Livros, e ouça a voz do teu louvor, e possa inebriar-me de ti e sondar as maravilhas da tua Lei, desde o princípio, em que fizeste o céu e a terra, até ao reino, contigo perpétuo, da tua Cidade Santa.
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                                                                Santo Agostinho
                                                             * In Confissões

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

                          A dimensão do profundo: o espírito e a espiritualidade

 

Leonardo Boff*


O ser humano não possui apenas exterioridade que é sua expressão corporal. Nem só interioriadade que é seu universo psíquico interior. Ele vem dotado também de profundidade que é sua dimensão espiritual.
O espírito não é uma parte do ser humano ao lado de outras. É o ser humano inteiro que por sua consciência se percebe partencendo ao Todo e como porção integrante dele. Pelo espírito temos a capacidade de ir além das meras aparências, do que vemos, escutamos, pensamos e amamos. Podemos apreender o outro lado das coisas, o seu profundo. As coisas não são apenas ‘coisas’. O espírito capta nelas símbolos e metáforas de uma outra realidade, presente nelas mas que não está circunscrita a elas, pois as desborda por todos os lados. Elas recordam, apontam e remetem à outra dimensão a que chamamos de profundidade.
Assim, uma montanha não é apenas uma montanha. Pelo fato de ser montanha, transmite o sentido da majestade. O mar evoca a grandiosidade, o céu estrelado, a imensidão, os vincos profundos do rosto de um ancião, à dura luta da vida e os olhos brilhantes de uma criança, o mistério da vida.
É próprio do ser humano, portador de espírito, perceber valores e significados e não apenas elencar fatos e ações. Com efeito, o que realmente conta para as pessoas, não são tanto as coisas que lhes acontecem mas o que elas significam para suas vidas e que tipo de experiências marcantes lhes proporcionaram.
Tudo que acontece carrega, existencialmente, um caráter simbólico, ou podemos dizer até sacramental. Já observava finamente Goethe:”tudo o que é passageiro não é senão um sinal”(Alles Vergängliche ist nur ein Zeichen”). É da natureza do sinal-sacramento tornar presente um sentido maior, transcendente, realizá-lo na pessoa e faze-lo objeto de experiência. Neste sentido, todo evento nos relembra aquilo que vivenciamos e nutre nossa profundidade, vale dizer, nossa espiritualidade.
É por isso que enchemos nossos lares com fotos e objetos amados de nossos pais, avós, familiares e amigos; de todos aqueles que entram em nossas vidas e que tem significado para nós. Pode ser a última camisa usada pelo pai que morreu de um enfarte fulminante com apenas 54 anos, o pente de madeira da avó querida que faleceu já há anos ou a folha seca dentro de um livro, enviada pelo namorado cheio de saudades. Estas coisas não são apenas objetos; são sacramentos que nos falam para o nosso profundo, nos lembram pessoas amadas ou acontecimentos significativos para nossas vidas
O espírito nos permite fazer uma experiência de não-dualidade, tão bem descrita pelo zenbudismo. “Você é o mundo, é o todo” dizem os Upanishads da Índia enquanto o guru aponta para o universo. Ou “Você é tudo” como muitos yogis dizem. O Reino de Deus (Malkuta d’Alaha ou ‘os Princípios Guias do Todo) estão dentro de vós” proclamou Jesus. Estas afirmações nos remetem a uma experiência viva ao invés de uma simples doutrina.
A experiência de base é que estamos ligados e religados (a raiz da palavra ‘religião’) uns aos outros e todos com a Fonte Originária. Um fio de energia, de vida e de sentido passa por todos os seres tornando-os um cosmos ao invés de caos, uma sinfonia ao invés de cacofonia. Blaise Pascal que além de genial matemático era também místico, disse incisivamente; “é o coração que sente Deus, não a razão” (Pensées, frag. 277). Este tipo de experiência transfigura tudo. Tudo se torna permeado de veneração e unção.
As religiões vivem desta experiência espiritual. Elas são posteriores a ela. Articulam-na em doutrinas, ritos, celebrações e caminhos éticos e espirituais. Sua função primordial é criar e oferecer as condições necessárias para permitir a todas as pessoas e comunidades de mergulharem na realidade divina e atingir uma experiência pessoal do Espírito Criador. Infelizmente muitas delas se tornaram doentes de fundamentalismo e de doutrinalismo que dificultam a experiência espiritual.
Esta experiência, precisamente por ser experiência e não doutrina, irradia serenidade e profunda paz, acompanhada pela ausência do medo. Sentimo-nos amados, abraçados e acolhidos pelo Seio Divino. O que nos acontece, acontece no seu amor. Mesmo a morte não nos mete medo; é assumida como parte da vida, como o grande momento alquímico da transformação que nos permite estar verdadeiramente no Todo, no coração de Deus. Precisamos passar pela morte para viver mais e melhor
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*Leonardo Boff é autor de Espiritualidade: caminho de realização. Vozes 2003

domingo, 26 de agosto de 2012

" O Debate está Esquentando " - Marcelo Gleiser *

 

Marcelo Gleiser*
Antigo cético do clima 'vira a casaca' e aquece discussões sobre as mudanças climáticas

NAS ÚLTIMAS semanas, o debate sobre o aquecimento global deu uma ultra-aquecida, ao menos nos Estados Unidos.
Richard Muller, um cientista da Universidade da Califórnia em Berkeley, conhecido por seu antagonismo ao aquecimento global, não só virou a casaca como deduziu, a partir de uma reanálise de dados de sua pesquisa e da de outros grupos, que os culpados somos nós.
Muller argumenta que dados coletados de estações que monitoram mudanças de temperatura pelo planeta o forçaram a concluir que "a temperatura média do planeta subiu 1,39º C nos últimos 250 anos e que 0,84º C de aumento aconteceu nos últimos 50 anos. Ademais, é muito provável que todo esse aumento tenha resultado da emissão por humanos de gases-estufa".
Em editorial para o jornal "New York Times", Muller explicou por quê. Para isso, o cientista tem que isolar todas as causas que podem afetar o aumento de temperatura e analisar o impacto de cada uma separadamente.
Os resultados estão em cinco artigos, publicados, em inglês, em http://berkeleyearth.org.
Muller acredita que seus achados são ainda mais dramáticos do que os do Painel Internacional de Mudança Climática (IPCC), pois este estudou o impacto humano dos últimos 50 anos, enquanto que Muller e seu grupo estudaram a questão nos últimos 250 anos.
Quando um membro de uma tribo se junta ao inimigo, seus ex-companheiros atiram imediatamente flechas em sua direção.
Um dia após o editorial de Muller, cientistas liderados pelo controverso Anthony Watts contra-atacaram, argumentando que os dados das estações climáticas norte-americanas tiveram seus valores duplicados. Logo, a internet explodiu em uma guerra retórica completamente vazia de conteúdo científico.
Uma das críticas mais populares aos resultados de Muller é que ele se baseia na comparação entre o aumento da emissão de CO2 e da temperatura global e que isso não é suficiente.
Com razão, Muller e seus colegas discordam disso, assim como a maioria dos cientistas que estudam o clima seriamente. Quando se trata de um problema complexo como prever o clima global nas próximas décadas, muitos fatores entram em jogo. No máximo, pode-se fazer inferências estatísticas, o que vai contra a expectativa inocente das pessoas de achar que a ciência tem que ter respostas exatas.
Com o tempo, os modelos melhoram e as previsões vão se tornando cada vez mais firmes, exatamente o que vem ocorrendo com a questão climática.
Enquanto a retórica continua quente, vale lembrar que a Terra é um sistema finito. E qualquer sistema, quando sujeito a uma força que insiste em tirá-lo do equilíbrio, sofrerá mudanças que podem ser dramáticas. Por exemplo, a água na sua panela, sujeita ao fogo, acaba por ferver. Mesmo que seja (remotamente) possível que o aquecimento global não esteja sendo causado pelo homem, por que não usar o que já aprendemos até aqui para mudar nossa relação com o planeta -de parasítica a uma que seja mutuamente vantajosa?
A Terra pode existir sem a gente. Mas nós, sem ela, estamos perdidos.
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*MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita".
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Fonte: Folha on line, 26/08/2012