P.
José Tolentino Mendonça*
Olhando para nós próprios [cristãos] e
para o mundo em que nos inscrevemos, percebemos que não nos reconhecemos
necessariamente na sociedade porque ela mudou muito e já não é um reflexo das
nossas ideias, modelos sociológicos ou sequer do que pensamos que seria o melhor
ou o mais justo. O mundo é como é, e a verdade é que se distanciou muito de uma
gramática, modelo, cultura, noção de tempo e de Homem que enforma a tradição
cristã.
Penso que hoje surge como
inalienável por parte da Igreja o dever da explicação. Hoje os cristãos têm o
dever de explicar-se a um mundo que não os entende, não porque seja mau mas
porque funciona numa lógica diferente.
Há dias lia um artigo de António
Pinto Ribeiro, programador que colabora com a Gulbenkian, sobre a incapacidade
que um universitário de História de Arte tem hoje para ler aquilo que para nós
são evidências, como por exemplo uma pintura da Anunciação. Faltam chaves que
para nós parecem óbvias, porque as narrações evangélicas embrenham profundamente
a nossa vida. Mas essas chaves passaram a faltar, naturalmente, na cultura onde
estamos inscritos.
Às vezes falamos, na nossa
linguagem, de concílios, sínodos, bispos e encíclicas como se fosse a coisa mais
evidente para toda a gente. Não é, deixou de ser há muito tempo. Muitos dos
mal-entendidos surgem porque não entendemos este dever fundamental de
explicar.
Quando lemos os textos cristãos do
Novo Testamento percebemos que a força audaciosa das primeiras comunidades
estava muito em terem interiorizado que tinham de traduzir aquela mensagem.
Paulo sabe que o cristianismo nasceu na Palestina mas que ele tem de usar uma
nova linguagem se quiser chegar aos Coríntios e aos Filipenses. Não pode falar
da mesma maneira. Tem de arriscar, utilizar palavras novas. Um cristão é um
tradutor, um hermeneuta, tem de traduzir Deus por miúdos, tem de contar de forma
percetível aquilo em que acredita. Se não o fizer, este corte, este silêncio,
esta conversa de mal-entendidos vai simplesmente prolongar-se.
Além disso, nós, Igreja, precisamos
de fazer um mea culpa, um exame de consciência, e dizer que nós
próprios sabemos falar mal e ousamos muito pouco falar aos outros daquilo em que
acreditamos. Sabemos dizer mal as razões do nosso crer, mesmo em situações
favoráveis que nos são colocadas.
É claro que ao olhar para a cultura
contemporânea, para este grande caldo heterogéneo, podemos identificar atitudes
negativas, ambientes hostis, resistências, preconceitos, críticas a priori. Mas
o mais frequente é lidarmos com o nosso próprio mutismo. Nós interiorizamos a
própria indiferença do mundo. Não é o mundo que é indiferente; nós é que
interiorizamos, em grande medida, esse conceito da indiferença. E porquê? Porque
nos dá jeito; porque apostamos ainda pouco na formação das comunidades e dos
cristãos; porque a fé, muitas vezes, é incapaz de pronunciar as suas razões;
porque ela é muito mais o automatismo das práticas rituais e pouco o que é mais
longo e demorado, isto é, uma tomada de consciência que torna um freguês numa
testemunha. A transferência de deixarmos de ser fregueses da nossa paróquia e
passarmos a ser testemunhas na nossa comunidade é uma deslocação que precisamos
de fazer acontecer dentro da Igreja, porque ela não acontece
automaticamente.
As estruturas da Igreja precisam de
profissionalismo – uma palavra de que gostamos pouco e que também pode ter a sua
ambiguidade. Mas no fundo precisamos de criar e aprofundar competências na área
da comunicação e da organização, criando uma rede maior entre os
contactos.
Olhando para o mundo há fronteiras
que pensamos que existem mas que deixaram de existir. Ao descrever a
contemporaneidade, o filósofo italiano Gianni Vattimo diz que entramos num tempo
de um pensamento fraco. E a verdade é que há uma debilidade – e não podemos
fugir desta palavra – que caracteriza a Igreja, e isso porque estamos em
recomposição, porque percebemos que os modelos em que vivíamos são inadequados e
que a realidade sobra por todos os lados. Por exemplo, já não conseguimos
suportar o modelo paroquial porque nos faltam presbíteros para colocar em cada
paróquia. A própria ideia de território não resiste à prática das mobilidades
sociais. Há fenómenos tão novos que nos fazem viver no interior da Igreja numa
grande debilidade.
Este é também para nós um tempo de
crise. E há silêncios e silenciamentos que nascem desta hora que estamos a
viver. Percebemos que há modelos que não servem mas por outro lado ainda a
estamos a experimentar ou descobrir novos, a escutar os sinais dos tempos, a
encontrar caminhos... Estamos num tempo de balanço em relação ao que foi o séc.
XX e ao que foi um certo espírito ligado ao Concílio Vaticano II, ao mesmo tempo
que procuramos perceber o mundo em que nos inscrevemos, as grandes mutações
antropológicas e sociais a que as comunidades cristãs não são imunes. É um tempo
de debilidade que não podemos disfarçar com discursos musculados ou com
discursos para a frente que não querem encarar a realidade. A realidade é esta e
é isto que temos de abraçar e olhar.
Mas o mundo é também uma realidade
muito débil e ténue. As instituições sociais passam por processos de erosão e
recomposição a um nível muito mais profundo e radical do que aquele que nós
próprios experimentamos. Mesmo na diferenciação e na mudança que estão a sofrer,
sentimo-nos numa concha, protegidos. Não sentimos o que no mundo se sente muito
mais, que é uma insegurança e incerteza a toda a linha. Neste sentido, a lógica
do adversário que deixou de funcionar.
Na cultura contemporânea, e
pensando no caso português, a Igreja ainda é olhada como adversário cultural.
Precisamos de explicar e explicarmo-nos, para que a Igreja seja vista como
aliada e não como adversária. Esta mudança que nós temos de protagonizar. Nós,
cristãos, temos de fazer sentir aos outros que não têm de ter medo de nós, da
nossa presença, do nosso modo de viver, do nosso estilo, dos nossos valores, do
que celebramos na fé, da nossa liturgia, das nossas procissões, dos nossos
jornais, da nossa agência noticiosa… Não têm de temer porque nós somos aliados
do que a cultura e a civilização têm de mais fundamental, que é a pessoa humana
e a sua vida, em todos os momentos. Que é, no fundo, as suas dificuldades e a
situação concreta em que ela vive. Mas esta viragem – passar de adversário a
aliado – compromete-nos e hipoteca-nos. E não podemos ficar à espera diante de
uma porta aberta. Temos de ensaiar passos.
"Há uma frase do romancista
católico
Julien Green que diz assim:
«Enquanto vivermos inquietos,
podemos estar tranquilos».
Penso, por exemplo, que este
projeto do Pontifício Conselho para a Cultura, o Átrio dos Gentios, é uma forma
emblemática e icónica de dizer «não tenham medo», e perceber que pessoas com
perspetivas e experiências de vida diferentes podem ser complementares, e não
necessariamente rivais. O que o cristianismo traz ao mundo não é alguma coisa
que destrói o mundo - «Deus amou de tal maneira o mundo que lhe deu o seu
próprio Filho». O cristianismo é a alma do mundo, é chamado a trazer um
suplemento de espírito ao mundo, a alargar a esperança do homem e da
cultura.
Neste sentido penso que não temos
de interiorizar distanciamentos, hostilidades, indiferenças. A Igreja precisa de
ganhar uma atitude de encontro e de escuta, avaliando também a nossa própria
escuta. Nós escutamos o mundo; mas quem é que faz a escuta da escuta que nós
fazemos? Quem é que nos diz se a escuta que fazemos é profunda, sintonizada, ou
se em vez de escutar o mundo estamos antes a ouvir a nossa própria voz?
Este tempo, com todos os seus
impasses e crises, em que sentimos uma transformação muito grande e uma
diminuição sociológica daqueles que se identificam em termos de vida com a
mensagem cristã, é também o lugar para um florescimento da experiência
cristã.
Há trabalhos que temos de ser nós,
Igreja, a protagonizar, sem estar à espera que sejam os outros a fazê-los. Por
exemplo, temos de fazer e aprofundar, dentro da Igreja, o diálogo entre a fé e a
razão, pensando a fé de forma inteligente e não fazendo dela, simplesmente, um
irracional que incorporamos. Temos de fazer apelo e valorizar as mediações da
filosofia, do direito, da sabedoria, da teologia, do humor, da estética. Não é
por eu ser padre ou leigo empenhado, ou por o nosso jornal ter a etiqueta
católica – isso não é um selo de nada. Vivemos num tempo e numa cultura onde
precisamos de construir uma presença, não dando por adquirido o que já deixou de
ser. Nesse sentido há um grande desafio à humildade, ao caminho, à aceitação das
circunstâncias e à oportunidade que este tempo representa.
Se nós ouvirmos pensadores
contemporâneos, como Marcel Gauchet ou Habermas, percebemos que as sociedades
secularizadas não excluem o religioso. Pelo contrário, elas contam com o
religioso, mas esperam que ele seja explicado e testemunhado de forma pacífica e
credível. Não numa perspetiva do poder mas da relação, da apresentação, do
encontro. E neste contexto há uma atitude, um modo de situar-se no interior da
cultura que precisamos de aprofundar e que é uma urgência do próprio ser
cristão.
Dizer isto não é fazer a apologia
de uma neutralidade ou cair numa neutralização do cristão. O catolicismo
afirma-se como uma diferença, uma qualidade, uma condição e um estado. A fé não
é uma ideologia mas é alguma coisa em que nos tornamos – não nascemos cristãos
mas tornamo-nos cristãos, que é a fidelidade a Cristo.
A diferença cristã deve
conduzir-nos a um protagonizar a diferença. A nossa presença tem de fazer a
diferença. O mundo não nos dá nada de bandeja, e ainda bem. Nós também não damos
nada de bandeja ao mundo.
Há um desafio muito grande à
autenticidade. Podemos dizer que a mundo perdeu o norte, que a cultura vive de
sucedâneos e de contrafações, que vivemos num mimetismo e numa osmose onde se
esquece o que é a verdade… Mas não é bem assim. No coração do homem e da mulher
há uma nostalgia do autêntico, que vemos nas coisas mínimas: a lã virgem dos
nossos pullovers, o doce da avó, a comida caseira são imagens de marca,
pequeninos detalhes desta língua que a cultura fala mas que atestam esse desejo
de uma autenticidade, de uma verdade.
O mundo espera encontrar nos
cristãos palavras proféticas, sem dúvida; os profetas bíblicos tinham as
palavras proféticas mas também tinham os gestos proféticos. O tempo em que
vivemos é uma oportunidade para revalorizarmos e redescobrirmos a intensidade
comunicacional dos gestos proféticos. O mundo precisa de ver em nós gestos
proféticos. E muitas vezes o silêncio é um gesto profético, que toca
profundamente.
Por exemplo, o caso dos monges de
Tibhirine, na Argélia, essa comunidade mártir. São poucos homens que viveram de
forma pobre e humilde, sem grande comunicação com o exterior, a não ser a
relação com a aldeia muçulmana que os envolvia. Mas a experiência que realizam,
tecida do silêncio que marca e documenta a autenticidade daquelas vidas dadas,
não deixa ninguém indiferente. Aquelas vidas têm espessura de sentido, têm um
enigma, constituem uma pergunta.
A experiência cristã no mundo de
hoje tem de inscrever-se na cultura como pergunta, silenciosa, despretensiosa,
de quem deu a sua vida. Se o mundo reconhecer isto em nós, é capaz de perceber
que valeu a pena o encontro porque aquilo que descobriu é capaz de o iluminar e
de lhe dar alguma coisa que ele não tinha.
Há uma frase do romancista católico
Julien Green que diz assim: «Enquanto vivermos inquietos, podemos estar
tranquilos».
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*P. José Tolentino
Mendonça
Diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura