domingo, 30 de junho de 2013

Decadente Transporte Brasileiro, Estradas,Rotas DECADENTES....Brasil DECADENTE... e PERIGOSO

CARO E INSUFICIENTE
A decadência do transporte público

Um relatório do poder público sobre o serviço de ônibus oferecido aos gaúchos mostra que, na Capital, a tarifa é cara (cresceu muito acima da inflação), a frota aumentou muito pouco nos últimos anos e o número de passageiros cai ano após ano. Resultado disso é um crescimento vertiginoso no índice de reclamações.

A percepção do porto-alegrense de que o transporte público se apequenou, com tarifa alta, serviço insuficiente e falta de qualidade, é confirmada pela exatidão indesmentível dos números. A começar pelo bolso de quem paga para andar de ônibus. A Capital pratica o segundo bilhete mais caro do país – há 10 anos oscilava entre a 12ª e a 14ª posição.

Não foi sem propósito que Porto Alegre efervesceu como o embrião dos protestos que eclodiram pelo Brasil contra a tarifa do transporte coletivo. Durante a vigência do real como moeda, de 1994 até o ano passado, a passagem de ônibus subiu duas vezes mais que a inflação. Foram 670,27% em tarifaços, enquanto o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) ficou em 299,61%.

Tarifa exagerada não significou, como se poderia imaginar, melhoria no atendimento. Dados da própria Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) apontam que cresceu o descontentamento dos passageiros. O total de reclamações, sobre os mais variados motivos, pulou de 7,9 mil (em 2004) para 20,2 mil (2011).

O estrilo é mais alarmante naquilo que inferniza a vida do usuário – a superlotação, o descumprimento de horários e os atrasos nas viagens. Em 2011, mais de 7,9 mil se queixaram destes itens, em um aumento de 430% em relação a 2004.

O que acontece em Porto Alegre não é isolado. O professor de Engenharia da Universidade de Brasília (UnB) Joaquim José de Aragão lamenta que a mobilidade urbana nunca frequentou a agenda dos governantes. Não como deveria. Diante da inépcia das autoridades, Aragão diz que os empresários assumiram o controle.

– Começaram a tomar o poder, a ponto de se tornarem planejadores. E, para eles, transporte bom é com ônibus cheio, e o passageiro que se vire – critica.

Outro indicativo da decadência no transporte público de Porto Alegre é a queda no número de passageiros. Nos últimos 15 anos, houve uma redução de 6,6 milhões de bilhetes, na média mensal. Em 1998, quando a Capital tinha 1,3 milhão de habitantes, eram 25,9 milhões de passagens por mês. Em 2012, com 1,4 milhão de habitantes, o movimento caiu para 19,3 milhões.

Várias causas explicam o esvaziamento. Uma delas é a melhor renda do brasileiro, que foi incentivado a comprar o automóvel ou a motocicleta. Para o professor do Laboratório de Sistemas de Transportes (Lastran) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) João Fortini Albano, a motorização em massa gerou um desequilíbrio, o qual se refletiu na alta das tarifas.

– A redução da demanda pode ser a maior causa do aumento na passagem – observa Albano, lembrando que há menos clientes para ratear o custo do bilhete.

Se carros e motos invadiram as ruas, a frota de ônibus não acompanhou a expansão. Houve uma renovação – a idade média dos veículos é de quatro anos –, mas não a ampliação da oferta de assentos.

Mas como fazer com que as pessoas deixem o carro na garagem e peguem o ônibus? O diretor presidente da EPTC, Vanderlei Cappellari, diz que a estratégia é o investimento em outros tipos de transporte. A grande aposta é o projeto do metrô, de 25,8 quilômetros de extensão, que ligaria o Centro à Zona Norte.

Outra é o sistema BRT (na sigla em inglês, transporte rápido de ônibus). Em obras para a Copa de 2014, o BRT vai estender os atuais 55 quilômetros de corredores para 120 quilômetros. Na avaliação de Cappellari, quando o complexo estiver interligado e operando, o porto-alegrense terá o desejável para se mover.

nilson.mariano@zerohora.com.br

" A vez do povo desorganizado " < por Ferreira Gullar "



Os políticos se tornaram uma casta que se apropriou da máquina do Estado em seu próprio benefício
As manifestações de protesto ocorridas nas últimas semanas em numerosas cidades brasileiras são, sem sombra de dúvida, um fenômeno novo na vida política do país, nos últimos 20 anos.

Causou surpresa a muita gente --inclusive a mim-- que o aumento de R$ 0,20 nas tarifas de transporte urbano tenha provocado tamanha revolta e mobilizado tanta gente.

É que essas manifestações traziam consigo outras motivações que não se revelaram no primeiro momento. Logo pôde-se ver que o aumento das tarifas foi apenas o detonador de um descontentamento maior que põe em questão o próprio sistema político que nos governa.

Ouvi e li opiniões segundo as quais trata-se de um fenômeno internacional, uma vez que, em vários países, protestos populares têm se repetido com frequência. Trata-se, creio eu, de uma opinião equivocada, já que as razões desses protestos são diferentes de país para país. O que há de comum neles é a influência das redes sociais, que possibilitam mobilizações em tal escala.

No caso do Brasil, por exemplo, está evidente que a revolta é contra os políticos em geral, sejam de que partidos forem, pertençam ao governo ou à oposição. Isso se tornou evidente em diversos momentos quando militantes deste ou daquele partido tentaram se manifestar: foram vaiados e até espancados. Foi o caso do PT que, oportunista como sempre, tentou tirar vantagem da situação e se deu mal.

Mas de onde vem esse horror aos políticos? A resposta é óbvia: eles se tornaram uma casta que se apropriou da máquina do Estado em seu próprio benefício.
Essa máquina, que é mantida com o dinheiro de impostos escorchantes, eles usam para empregar seus parentes e companheiros de partido, para enriquecer a si e a seus familiares, manipulando licitações e contratos de obras públicas --e usam isso, sobretudo, para se manter no poder.

Essa situação tornou-se particularmente insuportável depois que Lula assumiu o governo e pôs em prática uma política populista que veio agravar ainda mais aqueles fatores negativos da vida política brasileira. Quem nele acreditava viu, decepcionado, que ele ignorou os compromissos éticos assumidos e aliou-se a figuras como Maluf e o bispo Macedo --sem falar na compra, com dinheiro público, de partidos corruptos.

Essa aliança, com o submundo político, de um líder que surgiu como uma esperança de renovação, só poderia conduzir as pessoas em geral --e particularmente os que confiaram nele-- à desesperança total quanto ao futuro da nação.

O mais grave é que, somando-se isso à política assistencialista que adotou, tornou-se eleitoralmente imbatível. Assim, sem outra saída, os inconformados foram para as ruas. Nessa rejeição ao poder constituído e aos políticos em geral, o povo descontente pode não saber ainda por onde vai, mas sabe por onde não vai.

Não por acaso, a maioria desses manifestantes é de classe média. Não foram os pobres dos subúrbios que vieram para as ruas protestar, pois recebem Bolsa Família e melhoraram de vida. Quem está insatisfeita e revoltada é a parte da sociedade que só perdeu com o populismo lulista, uma vez que o dinheiro público, em lugar de ser investido em hospitais, escolas e serviços públicos, foi e é usado em programas assistencialistas e demagógicos.

Por outro lado, o lulismo cooptou as entidades representativas dos trabalhadores e dos estudantes (a CUT e a UNE), que, contrariamente a suas origens e à sua história, agora impedem manifestações contrárias ao governo. Desse modo, tanto os trabalhadores quanto os estudantes não têm quem os represente na luta por suas reivindicações.

Por isso, meses atrás, afirmei nesta coluna que a única solução possível seria o povo desorganizado ir para as ruas, já que não conta com as organizações que deveriam representá-lo. É o que acontece agora: o povo desorganizado está nas ruas. Desmascarada, a CUT tentou juntar-se aos manifestantes, mas foi repelida por eles.
Sem alternativa, a presidente Dilma promoveu uma reunião com governadores e prefeitos para aparecer como porta-voz dos inconformados, e propôs medidas que não se sabe quando nem se serão mesmo postas em prática.

" Depredando a saúde da nação " ,< por Dr Miguel Srougi >*


As propostas para a saúde feitas pelo governo federal são piores do que os depredadores soltos pelas ruas, já que destroem vidas humanas

Como cidadão, fiquei deslumbrado com o clamor que varre a nação. Como médico, e ligado à saúde, mergulhei em esperanças. Contudo, com a mesma velocidade que esse sentimento aflorou, fui tomado por uma angústia incontida ao observar as manifestações oficiais.
Anunciou-se solenemente que seriam importados milhares de médicos estrangeiros e injetados R$ 7 bilhões em hospitais e unidades de saúde. Também se propôs a troca de R$ 4,8 bilhões de dívidas dos hospitais filantrópicos por atendimento médico e foi anunciada a criação de 11.400 vagas de graduação em escolas médicas.
Perplexo, gostaria de dizer que essas propostas são tão surrealistas que não podem ter sido idealizadas por autoridades sérias, mas sim por marqueteiros afeitos à empulhação. Piores do que os depredadores soltos pelas ruas, já que destroem vidas humanas.

A medicina exercida condignamente pressupõe equipes qualificadas, não apenas com médicos, mas também com enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Exige instalações minimamente equipadas, para permitir diagnósticos e tratamentos mais simples.

Necessita do apoio de farmácias, capazes de prover sem ônus para os necessitados, as medicações essenciais. Requer processos de higiene, assepsia e certo conforto, para dar segurança e respeitar a dignidade humana dos pacientes.

O que farão os médicos estrangeiros nas áreas remotas do Brasil apenas com termômetros e estetoscópios nas mãos? Irão receitar analgésicos, antidiarreicos e remédios para tosse, o que poderia ser mais bem executado por qualquer prático de farmácia, também afeito às doenças regionais. Médicos que nos casos mais delicados nem atestado de óbito poderão assinar, pois não conseguirão identificar a causa da infelicidade.

Pior ainda, como esses médicos conseguirão atuar limitados pela dificuldade de comunicação, desqualificados para tratar doenças já erradicadas em países sérios, frustrados por viverem em regiões destituídas de condições mais dignas de existência para eles próprios, suas mulheres e seus filhos? Certamente tratarão de migrar para centros mais prósperos, abandonando aqueles que nunca conseguirão expressar a desilusão.

Não custa lembrar que muitos países desenvolvidos aceitam médicos estrangeiros, contudo nenhum deles atua sem ser aprovado em exames extremamente rigorosos, que atestam a elevada competência profissional.

Igualmente falaciosa é a proposta de incrementar os recursos para a saúde. Num país como o Brasil, que gasta apenas 8,7% do seu Orçamento em saúde --muito menos que a Argentina (20,4%) e Colômbia (18,2%)-- somente mal-intencionados poderão acreditar que um aporte de recursos de 0,7% corrigirá a indecência nacional.

Também enganadora é a ideia de se recorrer às instituições filantrópicas. Em situação falimentar, deixam de pagar tributos porque não recebem do governo federal os valores justos pelo trabalho. Pelo mesmo motivo, serão incapazes de aumentar o já precário atendimento.

Quanto à criação de novas vagas para alunos de medicina, nada mais irrealista. Para acomodar os números apresentados, o governo teria que criar entre 120 e 150 escolas médicas. Com que recursos? Com que professores? Com que hospitais?

Presidente, termino pedindo desculpas pela minha insolência. Você, que é digna e tem história, não pode tergiversar perante o clamor de tantos filhos da nação. Faça ouvidos moucos ao embuste e combata de forma sincera os malfeitos.

Assuma, de forma sincera e não dissimulada, a determinação política de priorizar os recursos para as áreas sociais. Para não ser tomada por angústia infinita ao cruzar com a multidão,
 entoando com indignação o canto de Chico Buarque: "Você que inventou a tristeza/ Ora, tenha a fineza/ De desinventar/ Você vai pagar e é em dobro/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar".
MIGUEL SROUGI, 66, pós-graduado em urologia pela Universidade de Harvard, é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP e presidente do conselho do Instituto Criança é Vida

" Dilma em Chamas " ...

ELIANE CANTANHÊDE

BRASÍLIA - O Datafolha confirma para o leitor/eleitor o que oposições, Planalto e Lula já sabiam: a popularidade de Dilma esfarela e a reeleição vai para o beleléu. Uma queda de 27 pontos pode ser mortal.

Não foi por falta de aviso. Dilma entrou mal em 2013, autoconfiante com os recordes nas pesquisas, surda para o baixo crescimento com inflação alta, muda para os políticos e estridente com os auxiliares.

A popularidade já tinha despencado oito pontos antes mesmo das manifestações, pela falta de comando político e de rumo na economia. A explosão social fechou o cerco.

E não houve má vontade da mídia, tão demonizada no poder. Telejornais e jornais resistiram a admitir que a crise batia à porta da presidente, mesmo com o Planalto cercado na quinta-feira aguda. Não foi só o Exército que protegeu Dilma...

Mas o presidencialismo brasileiro é muito concentrador, e os louros e as culpas de tudo e qualquer coisa são sempre do (da) presidente. Dilma ainda pode se recuperar em parte, mas a abstrata reforma política não sensibiliza as massas e ela nunca mais será a mesma.

A perda de mais da metade da popularidade (8 mais 27) deixa o PT em pânico, desequilibra as peças no PMDB e mexe com os cálculos de toda ordem na complexa base aliada.

Do outro lado, reacende a candidatura Eduardo Campos, dá gás a Marina Silva e cria a sensação de "agora vai" na campanha de Aécio Neves, em que as atenções estão no PMDB, que tem faro para o poder.

Dilma ofendeu o vice Temer com a "barbeiragem" da constituinte exclusiva, bateu de frente com o deputado Eduardo Cunha, que manda na bancada, e não tem ideia do efeito arrastão que o PMDB pode ter nos outros partidos aliados.

Mas o mais devastador para Dilma é o efeito em Lula. Calado estava, calado continua. Soltou nota burocrática na sexta-feira e escafedeu-se para Lilongwe e Adis Abeba. Posto a salvo, enquanto Dilma vira cinzas.
Marilena Chauí e o pensamento mágico dos jovens
Paulo Ghiraldelli Jr*
“Pensamento mágico” é um pensamento que antes “explica” que explica. Fala em termos de relações que desprezam causalidade e racionalidade, elementos chaves do pensamento racional. Desse modo, tudo pode se transformar em tudo, e se surgir nele algo do nada, não é alguma coisa de se estranhar. Acostumamos, na filosofia, a dizer que o pensamento mágico está para rapsodo, o cantador das poesias mitológicas, assim como o pensamento racional está para o filósofo, o pensador autêntico. É assim que, em geral, todos nós escolarizados entendemos o pensamento mágico.

Marilena Chauí inventou de dizer que há uma “dimensão mágica” engajando os jovens (e outros participantes) nas manifestações de junho de 2013, as manifestações que eu tenho chamado de “a revolução do indivíduo”. Por meio de um marxismo difuso, ela assim formula sua observação:

“[o protesto] assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários e, portanto, não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa.

A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a ideia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação” (Teoria e Debate) (grifos meus)

Lendo este trecho fico com a impressão que há magia, sim, mas única e exclusivamente no modo com que Marilena Chauí pensa. Por que ela imagina que teríamos de ser proprietários da Internet, e não apenas usuários, para que a manifestação nossa, criada a partir de troca de informações na Internet, fosse válida? Por que ela imagina que, por sermos usuários, não conhecemos a tecnologia necessária, enquanto usuários, para poder utilizar a Internet na organização do movimento de protestos, organização esta que ela nega ter existido e nega que poderá existir?

Caso ela pense que pode utilizar o marxismo como ela está utilizando, ela erra feio. Marx jamais escreveu ou pensou assim. A dizer que o operário estava alienado em sua dimensão subjetiva porque estava objetivamente alienado dos meios de produção, Marx estava pensando no quanto o capitalismo como um todo podia criar uma metafísica ou, nos temos dele, uma ideologia, por meio das inversões que receberam o nome de fetichismo e reificação. Essas análises de Marx podem ser usadas pelo marxismo, mas não podem ser enfiadas em qualquer situação particular para dizer que as pessoas, uma vez não sendo donas das coisas com que operam, agirão acreditando em mágica ou participando de uma mágica. Isso é uma tolice.

Marilena Chauí não está com problemas só no entendimento da horizontalidade do movimento de protesto. Ela está com problemas cognitivos diante da tecnologia do mundo contemporâneo. No entanto, sociologicamente falando, o princípio dessa tecnologia não é tão diferente da tecnologia do livro.

Vejamos a tecnologia do livro funcionando. Vamos montar o quadro.

Marilena Chauí está em sua casa, e acabou de escrever um longo texto, que ela quer que chegue a um determinado público de modo a convencer aquele público a pensar e agir segundo o que ela quer. Feito isso, ele envia os manuscritos para uma editora, lugar em que há um empresário que vai produzir e veicular o livro dela para os leitores, aqueles que ela quer influenciar. Esse empresário, o Editor, vai publicar o livro se este antes de tudo lhe der dinheiro e prestígio. Dinheiro para ele e prestígio para a empresa, a editora. Ele vai ponderar sobre o conteúdo. Caso o conteúdo lhe dê dinheiro, mas em médio prazo der à sociedade subversão social, ele irá ponderar entre se vale a pena ganhar agora e perder depois. Caso possa apostar que não perderá, então publicará o livro. Marilena Chauí, como todos nós intelectuais, já incorporou esse mecanismo, que trabalha na nossa cabeça quase que imperceptivelmente, e sua escrita pode até sair radical, mas não o suficiente para não ser publicada. Desse modo, ela ganhará dinheiro, e também ganhará o empresário que, pesando os prós e contras, terminará por publicar. O livro chegará ao leitor e será uma peça com origem na “produção capitalista” como outra qualquer. Mas, pior, exercerá sobre o leitor, de certo modo, uma mágica. Será a mágica de lhe dizer verdades, pois o livro não terá consigo, em suas páginas, apenas a força de legitimidade da exposição racional, mas terá também a força da autoridade (ou quase um autoritarismo) de Chauí (com parte de sua autoridade vinda da instituição Universidade) e do Editor (com a autoridade do Dinheiro). E tudo isso cairá sobre o leitor sem que ele possa responder ou perguntar. Afinal, o Editor não publicará o livro do leitor descontente. Pode-se até desconfiar se haverá leitor descontente, após toda a máquina de propaganda da Universidade e da editora, capitalisticamente, começarem a funcionar.

Como se pode notar, eis aí a dimensão mágica que, para Marilena Chauí, é válida, pois lhe favorece. Agora, se a comunicação se dá de dupla mão, ela não participa. Ela não quer falar e ouvir. Ela quer só falar e mandar. Então, a Internet não serve para ela. Não tem o mesmo peso capitalista e autoritário do livro. A Internet exigiria de Marilena uma conversação com força racional que ela teme não ter, então ela não participa e, desse modo, condena. As uvas estão verdes, diz a raposa. Mas, na verdade, o que ocorre é paúra mesmo, medo atroz do debate horizontal, do qual ela nunca participou, pois está há anos no exercício autoritário do debate vertical. Vale aqui lembrar a avaliação de Sócrates a respeito da escrita, como está no Fedro, de Platão: o livro é burro, ele sempre responde à mesma coisa, seja lá qual forem as perguntas que possamos fazer. Marilena gosta do livro, odeia a Internet, a Internet a obrigaria à dialética, ao trabalho filosófico de “dar e pedir razões” no mesmo contexto temporal, e disso ela foge como o Diabo foge da Cruz.

Marilena Chauí acha a Internet “mágica”, no fundo, não pelos pressupostos marxistas que ela usa para analisar, aliás, erradamente, as mídias em geral. Ela pensa como pensa porque ela própria é uma pessoa que não consegue lidar com a tecnologia. Então, ela própria vê a máquina como mágica. Ela não vê a máquina editorial funcionando, desse modo não aplica a mesma coisa a uma tal máquina. O livro é natural, a Internet não – ela pensa assim porque não entendeu nem o livro e nem a Internet.
Outro erro fantástico da professora Chauí é ela acreditar que os participantes dos protestos, os usuários da Internet, apertam um botão e então acreditam que seus desejos estão satisfeitos. Quem ela pensa que são os jovens, bebês?

Ela não sabe que o botão tocado acionou apenas um aviso para o colega, de modo a marcar um lugar para o encontro do protesto. Ela não sabe que o botão tocado, antes de tudo, é uma “máquina de escrever” que nada faz que disponibilizar cartas. A Internet não é um bicho, é apenas um corredor de carta trocadas, bilhetes repassados, nada além do que sempre foi feito quando se quer combinar algo ou discutir algo, sem a mediação de “autoridades”. O fato do tempo ter se tornado um tempo curto entre o falar e o responder, ou o mesmo tempo, muda a dinâmica do movimento de protesto, mas não muda uma coisa: há de se pensar no que será o protesto e decidir pela participação segundo desejos políticos e segundo o grau de informação que se tem. O tempo de pergunta e resposta, “sem mediações”, como Chauí diz, é o que ela teme verdadeiramente. Ela gostaria de ter não só o tempo a seu favor, mas também o espaço. Ela sabe falar a partir de uma mesa (ou palanque) que, antes de tudo, lhe dê a autoridade que ela precisa para falar. Ela adora falar dessa maneira, principalmente se a plateia, de antemão, concorda com ela em tudo. Ela se sente bem em ser professora antes de um partido que de uma escola.

O protesto, ao contrário do que ela pensa, envolve responsabilidade de cada um, pois ali vai ocorrer, de certo modo, algo que no passado chamávamos de “desobediência civil”, ou quase isso. Esse tipo de protesto, assim organizado, não pode repetir o passado, não pode levar o que participa a jogar nas costas da vanguarda a responsabilidade de atitudes do protesto. Não é uma parada militar ou um comício do PT ou PSDB. É um protesto horizontal, e ninguém está alheio ali às responsabilidades, uma vez que, dependendo de como as coisas evoluem, a consequência, que é o enfrentamento com a polícia, se dá no mesmo momento. Aliás, é por isso que aqueles que pediam que o Movimento do Passe Livre delatasse os que seriam os “vândalos”, estavam não só moralmente errados, mas também errados na maneira de compreender o movimento de protesto (como o caso da jornalista Patrícia Campos). Não havia vanguarda e, portanto, não havia a “polícia interna” do movimento, como ocorria nos comícios do PT. Nesses comícios, nos quais Marilena Chauí se criou, havia o palanque que policiava os militantes, de modo que não ocorresse qualquer dissidência comprometedora da imagem petista. Sempre soubemos disso. Aliás, foi fugindo disso que os jovens de hoje iniciaram o movimento de protesto longe do PT e contra o PT. A Internet foi o meio que eles usaram para escapar do mando não só dos conservadores, mas também e principalmente da Marilena Chauí e do PT.

Assim, as razões com que Marilena trabalha, para explicar a “dimensão mágica” e o pensamento mágico que estariam guiando os protestos, não são boas razões. É mais fácil acreditar, pelo que ela escreveu, que ela nunca soube o que é o livro e, por isso, não sabe o que são as mídias, e muito menos a Internet. Não sabendo isso, também não sabe o que os jovens pensam. Sabe apenas que os jovens não seguem mais o PT e, por isso, ela se põe assim, meio que magoada por um protesto que mudou a agenda política do Brasil, e o fez contra os ídolos de Marilena, que governam o país, ou seja, Lula, Dilma, Sarney, Renan Calheiros etc.
--------------------------
* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/marilena-chaui-e-o-pensamento-magico-dos-jovens/

" Anjos "


Martha Medeiros*
Fala-se muito em Deus, mas pouco em anjos. Acredito neles, nos zelosos guardadores, não sentados em nuvens tocando trombeta, mas aqui, no plano terreno. Um pode ser o anjo do outro. Você pode ser meu anjo, e eu o seu.

Vou compartilhar uma história que aconteceu no final de fevereiro. Recebi um convite para integrar a equipe de uma instituição britânica liderada pelo filósofo e escritor Alain de Botton, a The School of Life, que está introduzindo atividades no Brasil. Topei. No entanto, meu inglês é precário. Consigo viajar sem pagar micos, me comunico em hotéis e restaurantes, mas não tenho fluência para manter uma conversa digna com um estrangeiro. E isso será fundamental no novo desafio profissional que me surgiu. Preciso aprender inglês pra ontem. Como? De preferência, estudando fora, fazendo um curso de imersão. Até então, isso nunca tinha passado de um sonho da juventude.

Dias depois de a The School of Life me procurar, recebi outro convite: lançar meus livros em Torres. Passei quase três horas autografando para veranistas e moradores da cidade. Quando a livraria estava fechando a porta, um homem insistiu em entrar. Um turista. Ele pediu minha dedicatória, a última da noite, e me entregou seu cartão. Era, simplesmente, um renomado gestor de cursos de inglês no Exterior. O procurei na semana seguinte e, para encurtar a história, estou matriculada em uma das escolas mais sérias da Inglaterra, já tenho um flat alugado e estou com toda a burocracia resolvida. De quebra, fiz um novo amigo.

Esse tipo de história é recorrente na minha vida. Qualquer questão que se apresente, a solução cai do céu em dias, às vezes em horas, através de alguém que não conheço. O exemplo que dei é elitista, mas já aconteceram coisas bem mais prosaicas e milagrosas – nunca me apertei. Sempre um anjo apareceu do nada.

Pode-se chamar isso de ter sorte, ou uma boa estrela. Dá no mesmo. Estamos falando de receptividade e de doação. Você tem um anjo porque também já foi o anjo de alguém. E se tudo não passar de baboseira, que seja. Num mundo rude como o nosso, há que se flertar com o esotérico.

~

No momento em que você me lê, já estou em Londres. Amanhã começam minhas aulas e não vai ser moleza: serão seis horas por dia, afora os temas de casa e alguns compromissos com a The School of Life, a entidade que deu início a essa minha movimentação. Por isso, ficarei ausente do jornal durante todo o mês de julho. Prometo retornar em agosto mais inspirada e, se os anjos ajudarem, reencontrar vocês com saudades. Até breve.
----------------
* Escritora. Cronista da ZH

" A juventude não dormirá "

 - DIANA LICHTENSTEIN CORSO
             -  ZERO HORA -


 

Em 1964, num pequeno texto com esse título, escrito para a revista New Society, o psicanalista Winnicott tentava dialogar com aqueles que se horrorizavam diante de manifestações juvenis: "É dada publicidade a cada ato de baderna juvenil porque o público não quer ouvir ou ler a respeito dessas façanhas adolescentes que estão isentas de qualquer desvio antissocial. Além disso, quando acontece um milagre, como os Beatles, existem aqueles adultos que franzem o cenho quando podiam soltar um suspiro de alívio _ quer dizer, se estivessem livres da inveja que sentem do adolescente desta fase". Veja bem, ele retrata a obsessão do público por uma minoria de vândalos, cego à verdadeira relevância dos acontecimentos. O título refere a uma personagem de Shakespeare, que odiava a juventude e desejava que se dormisse dos 16 aos 23 anos.
É interessante a menção aos vovôs do rock, justamente para lembrar de que o tempo passa e crescemos como civilização assimilando e aprendendo com o que parecia dissonante e impossível de catalogar. O que mais alarma os intérpretes de plantão, nos quais me incluo, é a ignorância do rumo que as insatisfações expressadas vão tomar. Não se sabe do resultado das próximas eleições, nem como as cidades receberão a Copa e principalmente está para se descobrir como funcionam a política e a informação na era da internet. Como tampouco se sabia da comunicação após o telégrafo e o telefone, do rumo da música depois do rock, do destino da família após a revolução dos costumes, das mulheres após a pílula, do livro após o computador. Os adultos de diferentes épocas são reincidentes no medo do desconhecido, lembram seus tempos de interrogações e temem não ter feito as melhores escolhas. Os jovens representam esse processo, estão fadados a atravessá-lo e acabam suportando melhor o que não controlam.
Nesse e noutros textos, Winnicott lembra que a juventude passa nos indivíduos, que ficam velhos como os Beatles, mas nas sociedades a expressão juvenil chegou para ficar. Ele a chamou elogiosamente de "imaturidade adolescente", que seria a fonte das dúvidas que movem revoluções e permitem invenções. Tudo o que nos tornamos como civilização tem uma dívida com aqueles que enxergaram as coisas de modo diferente.

 
Mudam os atores, mas a peça da juventude segue em cartaz. A vantagem da visão de mundo adolescente, ou juvenil, é justamente sua relação com o tempo, a capacidade de reconhecer, com tristeza, mas sem pânico, que o futuro é incerto.
 
Ser jovem é conviver com as próprias indefinições: duvidar sobre a quem e como amar, no que acreditar, como trabalhar, a quem admirar e o que se quer aprender. Ficar velho é satisfazer-se com o senso comum, é alardear o fim do mundo a cada vez que alguém faz um barulho que nosso cérebro não consegue decodificar. Encerro com Winnicott, pedindo que sejamos capazes de interpretar e conter nossa "indignação moral causada por ciúme da juventude". Corrompendo Quintana: a meninada passará, a juventude passarinho.

sábado, 29 de junho de 2013

Uma lição do aprender

J.J. Camargo:

O que ensinamos sem perceber

Mesmo sem querer, às vezes passamos lições que não estão nos livros

 
J.J. Camargo: O que ensinamos sem perceber  Edu Oliveira/Arte ZH
Foto: Edu Oliveira / Arte ZH
J.J. Camargo*
*Cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia
A individualização de um cliente ou um paciente é um pré-requisito básico na conquista de sua estima e afeição. Por isso, errar o nome de alguém machuca tanto e tão irreparavelmente.

Chamar alguém pelo nome, em vez de "vozinho" ou "seu" ou "meu senhor", é uma introdução de dignidade na relação com qualquer pessoa, não importa o quanto ela seja famosa ou desconhecida. E mais ainda se ela for desconhecida.

As apresentações improvisadas, que vão desde o chulo "cara!" até o falso galante "madame", não são mais do que arremedos de um introito que nasce marcado pela vulgarização.

Chamar alguém pelo nome é antecipar que se dará importância à relação que se inicia.

E não importa que alguns considerem antiquado: apresentação que se preze exige alguma solenidade, esse ingrediente indispensável na construção do respeito.

O Ivan é um estudante de 5º ano da Faculdade de Medicina da Bahia e, durante dois meses, estagiou na cirurgia torácica da Santa Casa. Cara limpa, atento, disponível, carinhoso no trato com as pessoas. Um mês depois, ao abrir a caixa de mensagens, encontrei um e-mail dele, relatando uma experiência pessoal interessante:

"Queria muito lhe agradecer pela oportunidade de estagiar no seu maravilhoso serviço, mas até esta sexta-feira eu não sabia o que dizer. Então, começando um estágio na medicina comunitária, aqui em Salvador, atendi à dona Rosângela, uma deficiente visual de 34 anos, com seu filho Gabriel, um recém-nascido com 15 dias de vida. Concluída a consulta, ela me perguntou onde eu estava e, olhando na minha direção, perguntou
:

— Doutor, qual é mesmo o seu nome?

— Ivan Campinho, Rosângela.

— Você se incomodaria se lhe pedisse para atender meu filho enquanto você estiver nesse serviço?

— Mas é lógico que não!

— Essa foi a primeira vez que um médico me identificou pelo nome e não como a gestante com deficiência visual.
Professor, fiquei com vontade de contar a ela que tinha aprendido isso no seu serviço, onde os residentes discutem os pacientes pelo nome, sem chamá-los pela doença e, mesmo assim, todos sabem de quem e do que estão falando.

Esse cuidado tinha sido ensinado no começo do curso, mas acho que fui esquecendo. Ao passar por um serviço de ponta, onde os médicos mantêm esse tipo de preocupação, pude perceber o quão ‘mecânico’ eu havia me tornado e como essas atitudes fazem diferença para aqueles que nos procuram, fragilizados e aflitos por uma doença qualquer.

Muito obrigado por me ajudar a abrir os olhos para o que realmente importa."

Desliguei o computador, sem ler as outras mensagens.

Estava cansado, tinha sido uma semana difícil, e não havia a menor chance de que alguma delas pudesse ser mais gratificante.

" A arte de cuidar dos enfermos " < por Leonardo Boff >


 
Nos últimos anos tenho trabalhado de forma aprofundada a categoria do cuidado especialmente nos livros Saber Cuidar e O Cuidado Necessário (Vozes). O cuidado mais que uma técnica ou uma virtude entre outras, representa uma arte e um paradigma novo de relação para com a natureza e com as relações humanas, amoroso, diligente e participativo. Tenho tomado parte de muitos encontros e congressos de operadores da saúde com os quais pude dialogar e aprender, pois o cuidado é a ética natural desta atividade tão sagrada.

Retomo aqui algumas idéias referentes às atitudes que devem estar presentes em quem cuida de enfermos seja em casa seja no hospital. Vejamos algumas delas entre outras.

Compaixão: é a capacidade de colocar-se no lugar do outro e sentir com ele. Não dar-lhe a impressão que está só e entregue à sua própria dor.

Toque da carícia essencial: tocar o outro é devolver-lhe a certeza de que pertence à nossa humanidade. O toque da carícia é uma manifestação de amor. Muitas vezes, a doença é um sinal de que o paciente quer se comunicar, falar e ser ouvido. Quer identificar um sentido na doença. O enfermeiro ou a enfermeira ou médico e a médica podem ajudá-lo a se abrir e a falar. Testemunha uma enfermeira: “quando te toco, te cuido; quando te cuido te toco; se és um idoso te cuido quando estás cansado; te toco quando te abraço; te toco quando estás chorando; te cuido quando não estás mais podendo andar”.
 

Assistência judiciosa: O paciente precisa de ajuda e a enfermeira ou o enfermeiro deseja cuidar. A convergência destes dois movimentos gera a reciprocidade e a superação do sentimento de uma relação desigual. A assistência deve ser judiciosa: tudo o que o paciente pode fazer, incentivá-lo a fazer e assisti-lo somente quando já não o pode fazer por si mesmo.

Devolver-lhe a confiança na vida: O que o paciente mais deseja é recuperar a saúde. Dai ser decisivo devolver-lhe a confiança na vida: em suas energias interiores, físicas, psíquicas e espirituais, pois elas atuam como verdadeiras medicinas. Incentivar gestos simbólicos, carregados de afeto. Não raro, os desenhos que a filhinha traz para o pai doente, suscita nele tanta energia e comoção que equivale a um coquetel de vitaminas.

Fazê-lo acolher a condição humana. Normalmente o paciente se interroga perplexo: “por que isso foi acontecer comigo, exatamente agora em que tudo na vida estava dando certo? Por que, jovem ainda, sou acometido de grave doença”? Tais questonamentos remetem a uma reflexão humilde sobre a condition humaine que é, em todo o momento, exposta a riscos e à vulnerabilidades inesperadas.
Quem é sadio sempre pode ficar doente. E toda doença remete à saúde que é o valor de referência maior. Mas não conseguimos saltar por cima de nossa sombra e não há como não acolher a vida assim como é: sadia e enferma, bem sucedida e fragilizada, ardendo por vida e tendo que aceitar eventuais doenças e, no limite, a própria morte. É nestes momentos em que os pacientes fazem profundas revisões de vida. Não se contentam apenas com as explicações científicas (sempre necessárias), dadas pelo corpo médico mas anseiam por um sentido que surge a partir de um diálogo profundo com seu Self ou da palavra sábia de um parente, de um sacerdote, de um pastor ou de uma pessoa espiritual. Resgatam, então, valores cotidianos que antes sequer percebiam, redefinem seu desenho de vida e amadurecem. E acabam tendo paz.

Acompanhá-lo na grande travesia. Há um momento inevitável que todos, mesmo a pessoa mais idosa do mundo, devem morrer. É a lei da vida, sujeita à morte: uma travessia decisiva. Ela deve ser preparada por toda uma vida que se guiou por valores morais generosos, responsáveis e benfazejos.
Mas para a grande maioria, a morte é sofrida como um assalto e um sequestro, gerando sentimento de impotência. E então dá-se conta de que, finalmente, deve se entregar.

A presença discreta, respeitosa de alguém, da enfermeira ou do enfermeiro ou do parente próximo ou da amiga, pegando-lhe a mão, susurrando-lhe palavras de conforto e de coragem, convidando-o a ir ao encontro da Luz e ao seio de Deus que é Pai e Mãe de bondade, podem fazer com que o moribundo saia da vida sereno e agradecido pela existência que viveu.

Sussurar-lhe ao ouvido, se possui uma referência religiosa, as palavras tão consoladoras de São João: Se teu coração te acusa, saiba que Deus é maior que teu coração (3,20). Pode entregar-se tranquilamente a Deus cujo coração é de puro amor e de misericórdia. Morrer é cair nos braços de Deus.

Aqui o cuidado se revela muito mais como arte que como técnica e supõe no agente de saúde densidade de vida, sentido espiritual e um olhar que vai para além da morte. Atingir este estágio é uma missão a que o enfermeiro e enfermeira e também os médicos e médicas devem buscar para serem plenamente servidores da vida. Para todos valem as sábias palavras: “A tragédia da vida não é a morte, mas aquilo que deixamos morrer dentro de nós enquanto vivemos”.

"< Último texto de Teresa Urban "> " Ninguém mandou você perguntar "

 

 


"Bem, deu no que deu, não somos um país,
somos um monte de “eu”, cada um com seu cartaz,
seu facebook e nada que os ligue."

Ruth Bolognese recebeu este texto de Teresa Urban, (http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521433-morre-aos-67-anos-a-jornalista-e-ambientalista-teresa-urban) o último que ela escreveu antes falecer anteontem à noite. É uma reflexão sobre os acontecimentos destes dias. Lúcida, afiada, procura mostrar à amiga o caráter do movimento que levou milhares às ruas.

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521465-ninguem-mandou-voce-perguntar-ultimo-texto-teresa-urban

                                                                       Eis o texto.

Olá Ruth, estou sem falar há dez dias, não por perplexidade mas por ordens médicas. O silêncio, neste barulho todo, me obrigou a pensar mais do que agir e foi uma experiência muito nova para mim. Montar um quebra-cabeças destes é difícil, amiga, porque a primeira coisa que descobri é que nem mesmo falamos a mesma língua (hoje li em algum lugar que não tem tecla SAP para isso).

Abrimos um fosso tão grande entre o que chamamos de povo brasileiro e as elites (governo, políticos, ricos, intelectuais, jornalistas, esquerdistas, nós) e agora estão em nossa frente, serpenteando pelas ruas das cidades, anunciando sua existência.

Bom, quanto tempo faz que a gente não se pergunta como as pessoas se sentem nas cidades massacrantes, nos ônibus entupidos, na falta de respeito de motoristas com pedestres, de motociclistas com motoristas, de professor com aluno, de aluno com professor, de jovem com velho, de velho com jovem, de meninos de rua com gente de bem, de trabalhadores endividados pelo consumo fácil, de falta de amor, de médicos gelados como pedra, de gente entediada, de tráfico, de meninos mortos na periferia, de prisões lotadas, de crimes impunes…longa lista.

Lembra, Ruth, como foi o êxodo rural dos anos 70? Perderam-se as raízes. as cidades viraram amontoados humanos de um nível crescente de hostilidade, mas a gente vai levando. Vizinhos, comunidade, amigos, partido, Estado que protege os mais fracos ??? bobajada, mano velho, vamos tocando, tem time de futebol. Tenho pensado muito em algumas palavras: pertencimento e desgarrados.
Bem, deu no que deu, não somos um país, somos um monte de “eu”, cada um com seu cartaz, seu facebook e nada que os ligue.

Pode ser que um monte de eu se sinta pertencendo a alguma coisa, assim junto na rua… A crise é de representatividade? é, mas não tão simples que uma reforma partidária resolva.

Lembrei muito de uma cena antiga, quando contestávamos a instalação da Renault nos mananciais e alguém perguntou quem representava a empresa naquela discussão. E um velhinho sem dentes, paletó de mangas curta que não conseguiam esconder os rotos punhos da camisa, levantou o braço e disse: eu represento a Renault. Nunca esqueci disso porque não entendi qual a crença que levou aquele homenzinho a fazer isso (ninguém mandou, ele estava muito sozinho ali), mas acho que foi um momento de ousadia incrível.

Dizer eu me represento é mais ousado ainda e muito mais perigoso, Ruth. Ninguém representa ninguém naquela multidão, talvez depois, na foto no facebook, troquem suas representatividades. Chegamos a isso por negligência e prepotência e agora é um trabalho danado de grande voltar a pensar em coisas pequenas para fazer contato com os alienígenas. Quem sabe aquele dedinho do ET de Spilberg tocando o dedo do menino ajude…

Agora, o que é mesmo ruim nesta história é o que a brava imprensa brasileira fez: criou uma nova espécie, sem nenhum estudo, nenhuma base científica, sem nenhuma pergunta: homo sapiens vandalus lamentavilis. Ruth,que vergonha tenho de ser jornalista. Quem são, afinal, aqueles meninos que não temem a polícia, que devolvem as bombas, que chutam tudo com fúria, que saem das lojas saqueadas com sacolas e somem na escuridão? Quem são, quantos são, onde vivem, de onde surgiram? São brasileiros ou só são brasileiros os que serpenteiam sem rumo?

São os dentes da fera, Ruth, só os dentes. O resto, a gente não conhece. Enquanto continuarem dividindo o país entre manifestantes e vândalos ou, como ontem na OTV, uma repórter mais perdidinha dizia, protestantes e fanáticos, não vai dar para entender o que de fato acontece.

Outro pior é a legitimação e o aplauso à repressão policial. Não sei se você viu, mas ontem havia uma galera na frente do Palácio Iguaçu (pra Curitiba, bastante gente, umas 10 mil pessoas?) quietos, sem nada que dizer, às vezes cantavam algo tipo “sou brasileiro com muito orgulho” exigiam caras e cartazes para a câmara de TV, andavam de um lado para o outro e só, só, só. Não sei porque estavam ali. Passaram reto pela Câmara, pela Prefeitura, estavam ao lado da Assembléia Legislativa mas pararam na frente do Palácio às escuras. Ninguém para falar, nem por eles nem para eles nem com eles. Foi uma cena muito surreal, que durou tempo, debaixo de chuva e frio.

De repente, do nada, o Palácio do Governo começa a vomitar uma enfurecida tropa de choque que sai jogando bomba, atirando bala de borracha sem mais. Joãozinho estava lá, Thiago estava lá, Dani, filha de Clovis, estava lá. E mais uma galera de meninos que só estavam lá. Pelo tanto de luz de celular, era pra mostrar depois no face. Só então, na correria do depois, que os dentes surgiram na escuridão e começaram a morder a propriedade, pública ou privada, não importava.

Bom, Rurh, quando vi aquilo – polícia, cachorros, cavalos, bombas e os meninos correndo em desespero, chutando e quebrando tudo -, depois de muito, mas muito tempo na minha vida marvada, chorei.
------------------------
Fonte: http://www.nossofuturoroubado.com.br/portal/noticias/ninguem-mandou-voce-perguntar-ultimo-texto-de-teresa-urban

sexta-feira, 28 de junho de 2013

" As multidões nas ruas : como interpretar ???


Leonardo Boff*
Um espírito de insurreição de massas humanas está varrendo o mundo todo, ocupando o único espaço que lhes restou: as ruas e as praças. O movimento está apenas começando: primeiro no norte da África, depois na Espanha com os “indignados”, na Inglaterra e nos USA com os “occupies” e no Brasil com a juventude e outros movimentos sociais. Ninguém se reporta às clássicas bandeirtas do socialismo, das esquerdas, de algum partido libertador ou da revolução. Todas estas propostas ou se esgotaram ou não oferecem o fascínio suficiente para mover as massas. Agora são temas ligados à vida concreta do cidadão: democracia participativa, trabalho para todos, direitos humanos pessoais e sociais, presença ativa das mulheres, transparência na coisa pública, clara rejeição a todo tipo de corrupção, um novo mundo possível e necessário. Ninguém se sente representado pelos poderes instituídos que geraram um mundo politico palaciano, de costas para o povo ou manipulando diretamente os cidadãos.
Representa um desafio para qualquer analista interpretar tal fenômeno. Não basta a razão pura; tem que ser uma razão holística que incorpora outras formas de inteligência, dados aracionais, emocionais e arquetípicos e emergências, próprias do processo histórico e mesmo da cosmogênese. Só assim teremos um quadro mais ou menos abrangente que faça justiça à singularidade do fenômeno.
Antes de mais nada, importa reconhecer que é o primeiro grande evento, fruto de uma nova fase da comunicação humana, esta totalmente aberta, de uma democracia em grau zero que se expressa pelas redes sociais. Cada cidadão pode sair do anonimato, dizer sua palavra, encontrar seus interlocutores, organizar grupos e encontros, formular uma bandeira e sair à rua. De repende, formam-se redes de redes que movimentam milhares de pessoas para além dos limites do espaço e do tempo. Esse fenômeno precisa ser analisado de forma acurada porque pode representar um salto civilizatório que definirá um rumo novo à história, não só de um país mas de toda a humanidade. As manifestações do Brasil provocaram manifestações de solidariedade em dezenas e dezenas de outras cidades no mundo, especialmente na Europa. De repente o Brasil não é mais só dos brasileiros. É uma porção da humanidade que se indentifica como espécie, numa mesma Casa Comum, ao redor de causas coletivas e universais.
Por que tais movimentos massivos irromperam no Brasil agora? Muita são as razões. Atenho-me apenas a uma. E voltarei a outras em outra ocasião.
Meu sentimento do mundo me diz que, em primeiro lugar, se trata de um efeito de saturação: o povo se saturou com o tipo de política que está sendo praticada no Brasil, inclusive pelas cúpulas do PT (resguardo as políticas municipais do PT que ainda guardam o antigo fervor popular). O povo se beneficiou dos programas da bolsa família, da luz para todos, da minha casa minha vida, do crédito consignado; ingressou na sociedade de consumo. E agora o que? Bem dizia o poeta cubano Ricardo Retamar: “o ser humano possui duas fomes: uma de pão que é saciável; e outra de beleza que é insaciável”. Sob beleza se entende educação, cultura, reconhecimento da dignidade humana e dos direitos pessoais e sociais como saúde com qualidade minima e transporte menos desumano.
Essa segunda fome não foi atendida adequadamente pelo poder publico seja do PT ou de outros partidos. Os que mataram sua fome, querem ver atendidas outras fomes, não em ultimo lugar, a fome de cultura e de participação. Avulta a consciência das profundas desigualdades sociais que é o grande estigma da sociedade brasileira. Esse fenômeno se torna mais e mais intolerável na medida em que cresce a consciência de cidadania e de democracia real. Uma democracia em sociedades profundamente desiguais como a nossa, é meramente formal, praticada apenas no ato de votar (que no fundo é o poder escolher o seu “ditador” a cada quatro anos, porque o candidato uma vez eleito, dá as costas ao povo e pratica a política palaciana dos partidos). Ela se mostra como uma farsa coletiva. Essa farsa está sendo desmascarada. As massas querem estar presentes nas decisões dos grandes projetos que as afetam e que não são consultadas para nada. Nem falemos dos indígenas cujas terras são sequestradas para o agronegócio ou para a indústria das hidrelétricas.
Esse fato das multidões nas ruas me faz lembrar a peça teatral de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes escrita em 1975:”A Gota d’água”. Atingiu-se agora a gota d’água que fez transbordar o copo. Os autores de alguma forma intuiram o atual fenômeno ao dizerem no prefácio da peça em forma de livro:O fundamental é que a vida brasileira possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro…Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira”. Ora, esta tragédia é denunciada pelas massas que gritam nas ruas. Esse Brasil que temos não é para nós; ele não nos inclui no pacto social que sempre garante a parte de leão para as elites. Querem um Brasil brasileiro, onde o povo conta e quer contribuir para uma refundação do pais, sobre outras bases mais democrático-participativas, mais éticas e com formas menos malvadas de relação social.
Esse grito não pode deixar de ser escutado, interpretado e seguido. A política poderá ser outra daqui para frente.
------------------------------------
* Leonardo Boff é autor de Depois de 500 anos: que Brasil queremos?

" As manifestações de JUNHO de 2013 - na Cidade de São Paulo - BRASIL -


Marilena Chaui*
Um traço marcante é o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero
Um traço marcante é o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero
Foto:Marcelo Camargo/ABr
Os manifestantes, simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações explícitas contra a política, realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos Poderes Executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do Poder
Legislativo nos três níveis

O que segue não são reflexões sobre todas as manifestações ocorridas no país, mas focalizam principalmente as ocorridas na cidade de São Paulo, embora algumas palavras de ordem e algumas atitudes tenham sido comuns às manifestações de outras cidades (a forma da convocação, a questão da tarifa do transporte coletivo como ponto de partida, a desconfiança com relação à institucionalidade política como ponto de chegada), bem como o tratamento dado a elas pelos meios de comunicação (condenação inicial e celebração final, com criminalização dos“vândalos”), permitam algumas considerações mais gerais a título de conclusão.

O estopim das manifestações paulistanas foi o aumento da tarifa do transporte público e a ação contestatória da esquerda com o Movimento Passe Livre (MPL), cuja existência data de 2005 e é composto por militantes de partidos de esquerda. Em sua reivindicação específica, o movimento foi vitorioso sob dois aspectos. Conseguiu a redução da tarifa e definiu a questão do transporte público no plano dos direitos dos cidadãos, e portanto afirmou o núcleo da prática democrática, qual seja, a criação e defesa de direitos por intermédio da explicitação (e não do ocultamento) dos conflitos sociais e políticos.

O inferno urbano

Não foram poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimiram sua perplexidade diante das manifestações de junho de 2013: de onde vieram e por que vieram se os grandes problemas que sempre atormentaram o país (desemprego, inflação, violência urbana e no campo) estão com soluções bem encaminhadas e reina a estabilidade política? As perguntas são justas, mas a perplexidade, não, desde que voltemos nosso olhar para um ponto que foi sempre o foco dos movimentos populares: a situação da vida urbana nas grandes metrópoles brasileiras.

Quais os traços mais marcantes da cidade de São Paulo nos últimos anos e, sob certos aspectos, extensíveis às demais cidades? Resumidamente, podemos dizer que são os seguintes:
  • explosão do uso do automóvel individual. A mobilidade urbana se tornou quase impossível, ao mesmo tempo em que a cidade se estrutura com um sistema viário destinado aos carros individuais em detrimento do transporte coletivo, mas nem mesmo esse sistema é capaz de resolver o problema;
  • explosão imobiliária com os grandes condomínios (verticais e horizontais) e shopping centers, que produzem uma densidade demográfica praticamente incontrolável, além de não contar com redes de água, eletricidade e esgoto, os problemas sendo evidentes, por exemplo, na ocasião de chuvas;
  • aumento da exclusão social e da desigualdade com a expulsão dos moradores das regiões favorecidas pelas grandes especulações imobiliárias e a consequente expansão das periferias carentes e de sua crescente distância com relação aos locais de trabalho, educação e serviços de saúde. (No caso de São Paulo, como aponta Erminia Maricato, deu-se a ocupação das regiões de mananciais, pondo em risco a saúde de toda a população; em resumo: degradação da vida cotidiana das camadas mais pobres da cidade);
  • o transporte coletivo indecente, indigno e mortífero. No caso de São Paulo, sabe-se que o programa do metrô previa a entrega de 450 quilômetros de vias até 1990; de fato, até 2013, o governo estadual apresenta 90 quilômetros. Além disso, a frota de trens metroviários não foi ampliada, está envelhecida e mal conservada; à insuficiência quantitativa para atender à demanda, somam-se atrasos constantes por quebra de trens e dos instrumentos de controle das operações. O mesmo pode ser dito dos trens da CPTM, também de responsabilidade do governo estadual. No caso do transporte por ônibus, sob responsabilidade municipal, um cartel domina completamente o setor sem prestar contas a ninguém: os ônibus são feitos com carrocerias destinadas a caminhões, portanto feitos para transportar coisas, e não pessoas; as frotas estão envelhecidas e quantitativamente defasadas com relação às necessidades da população, sobretudo as das periferias da cidade; as linhas são extremamente longas porque isso as torna mais lucrativas, de maneira que os passageiros são obrigados a trajetos absurdos, gastando horas para ir ao trabalho, às escolas, aos serviços de saúde e voltar para casa; não há linhas conectando pontos do centro da cidade nem linhas interbairros, de modo que o uso do automóvel individual se torna quase inevitável para trajetos menores.
Em resumo: definidas e orientadas pelos imperativos dos interesses privados, as montadoras de veículos, empreiteiras da construção civil e empresas de transporte coletivo dominam a cidade sem assumir nenhuma responsabilidade pública, impondo o que chamo de inferno urbano.

A tradição paulistana de lutas

Recordando: a cidade de São Paulo (como várias das grandes cidades brasileiras) tem uma tradição histórica de revoltas populares contra as péssimas condições do transporte coletivo, isto é, a tradição do quebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram e incendeiam ônibus e trens (à maneira do que faziam os operários no início da Segunda Revolução Industrial, quando usavam os tamancos de madeira – em francês, os sabots, donde a palavra francesa sabotage, sabotagem – para quebrar as máquinas). Entretanto, não foi esse o caminho tomado pelas manifestações atuais e valeria a pena indagar por quê. Talvez porque, vindo da esquerda, o MPL politiza explicitamente a contestação, em vez de politizá-la simbolicamente, como faz o quebra-quebra.

Recordando: nas décadas de 1970 a 1990, as organizações de classe (sindicatos, associações, entidades) e os movimentos sociais e populares tiveram um papel político decisivo na implantação da democracia no Brasil pelos seguintes motivos: introdução da ideia de direitos sociais, econômicos e culturais para além dos direitos civis liberais; afirmação da capacidade auto-organizativa da sociedade; introdução da prática da democracia participativa como condição da democracia representativa a ser efetivada pelos partidos políticos. Numa palavra: sindicatos, associações, entidades, movimentos sociais e movimentos populares eram políticos, valorizavam a política, propunham mudanças políticas e rumaram para a criação de partidos políticos como mediadores institucionais de suas demandas.

Isso quase desapareceu da cena histórica como efeito do neoliberalismo, que produziu:
  • fragmentação, terceirização e precarização do trabalho (tanto industrial como de serviços), dispersando a classe trabalhadora, que se vê diante do risco da perda de seus referenciais de identidade e de luta;
  • refluxo dos movimentos sociais e populares e sua substituição pelas ONGs, cuja lógica é distinta daquela que rege os movimentos sociais;
  • surgimento de uma nova classe trabalhadora heterogênea, fragmentada, ainda desorganizada que, por isso, ainda não tem suas próprias formas de luta e não se apresenta no espaço público e, por isso mesmo, é atraída e devorada por ideologias individualistas como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a ideologia do “empreendedorismo” (da classe média), que estimulam a competição, o isolamento e o conflito interpessoal, quebrando formas anteriores de sociabilidade solidária e de luta coletiva.

Erguendo-se contra os efeitos do inferno urbano, as manifestações guardaram da tradição dos movimentos sociais e populares a organização horizontal, sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos. Mas, diversamente dos movimentos sociais e populares, tiveram uma forma de convocação que as transformou num movimento de massa, com milhares de manifestantes nas ruas.

O pensamento mágico

A convocação foi feita por meio das redes sociais. Apesar da celebração desse tipo de convocação, que derruba o monopólio dos meios de comunicação de massa, é preciso mencionar alguns problemas postos pelo uso dessas redes, que possui algumas características que o aproximam dos procedimentos da mídia:
  • é indiferenciado: poderia ser para um show da Madonna, para uma maratona esportiva etc., e calhou ser por causa da tarifa do transporte público;
  • tem a forma de um evento, ou seja, é pontual, sem passado, sem futuro e sem saldo organizativo porque, embora tenha partido de um movimento social (o MPL), à medida que cresceu passou à recusa gradativa da estrutura de um movimento social para se tornar um espetáculo de massa. (Dois exemplos confirmam isso: a ocupação de Wall Street pelos jovens de Nova York, que, antes de se dissolver, tornou-se um ponto de atração turística para os que visitavam a cidade; e o caso do Egito, mais triste, pois, com o fato de as manifestações permanecerem como eventos e não se tornarem uma forma de auto-organização política da sociedade, deram ocasião para que os poderes existentes passassem de uma ditadura para outra);
  • assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários, e portanto não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, desse ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa. A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a ideia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação;
  • a recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de massa, portanto indiferente à determinação de classe social; ou seja, no caso presente, ao se apresentar como uma ação da juventude, o movimento assume a aparência de que o universo dos manifestantes é homogêneo ou de massa, ainda que, efetivamente, seja heterogêneo do ponto de vista econômico, social e político, bastando lembrar que as manifestações das periferias não foram apenas de “juventude” nem de classe média, mas de jovens, adultos, crianças e idosos da classe trabalhadora.
No ponto de chegada, as manifestações introduziram o tema da corrupção política e a recusa dos partidos políticos. Sabemos que o MPL é constituído por militantes de vários partidos de esquerda e, para assegurar a unidade do movimento, evitou a referência aos partidos de origem. Por isso foi às ruas sem definir-se como expressão de partidos políticos, e em São Paulo, quando, na comemoração da vitória, os militantes partidários compareceram às ruas foram execrados, espancados e expulsos como oportunistas – sofreram repressão violenta por parte da massa.

A crítica às instituições políticas não é infundada, possui base concreta:
  • no plano conjuntural: o inferno urbano é, efetivamente, responsabilidade dos partidos políticos governantes;
  • no plano estrutural: no Brasil, sociedade autoritária e excludente, os partidos políticos tendem a ser clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados; a qualidade dos Legislativos nos três níveis é a mais baixa possível e a corrupção é estrutural; como consequência, a relação de representação não se concretiza porque vigoram relações de favor, clientela, tutela e cooptação;
  • a crítica ao PT: de ter abandonado a relação com aquilo que determinou seu nascimento e crescimento, isto é, o campo das lutas sociais auto-organizadas, e ter-se transformado numa máquina burocrática e eleitoral (como têm dito e escrito muitos militantes ao longo dos últimos vinte anos).
Isso, porém, embora explique a recusa, não significa que esta tenha sido motivada pela clara compreensão do problema por parte dos manifestantes. De fato, a maioria deles não exprime em suas falas uma análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos políticos, qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um lado, e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuísmos da ditadura. Em lugar de lutar por uma reforma política, boa parte dos manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição republicana e democrática. Assim, sob esse aspecto, apesar do uso das redes sociais e da crítica aos meios de comunicação, a maioria dos manifestantes aderiu à mensagem ideológica difundida anos a fio pelos meios de comunicação de que os partidos são corruptos por essência. Como se sabe, essa posição dos meios de comunicação tem a finalidade de lhes conferir o monopólio das funções do espaço público, como se não fossem empresas capitalistas movidas por interesses privados. Dessa maneira, a recusa dos meios de comunicação e as críticas a eles endereçadas pelos manifestantes não impediram que grande parte deles aderisse à perspectiva da classe média conservadora difundida pela mídia a respeito da ética.

De fato, a maioria dos manifestantes, reproduzindo a linguagem midiática, falou de ética na política (ou seja, a transposição dos valores do espaço privado para o espaço público), quando, na verdade, se trataria de afirmar a ética da política (isto é, valores propriamente públicos), ética que não depende das virtudes morais das pessoas privadas dos políticos, e sim da qualidade das instituições públicas enquanto instituições republicanas. A éticada política, no nosso caso, depende de uma profunda reforma política que crie instituições democráticas republicanas e destrua de uma vez por todas a estrutura deixada pela ditadura, que força os partidos políticos a fazer coalizões absurdas se quiserem governar, coalizões que comprometem o sentido e a finalidade de seus programas e abrem as comportas para a corrupção. Em lugar da ideologia conservadora e midiática de que, por definição e por essência, a política é corrupta, trata-se de promover uma prática inovadora capaz de criar instituições públicas que impeçam a corrupção, garantam a participação, a representação e o controle dos interesses públicos e dos direitos pelos cidadãos. Numa palavra, uma invenção democrática.

Ora, ao entrar em cena o pensamento mágico, os manifestantes deixam de lado o fato de que, até que uma nova forma da política seja criada num futuro distante, quando, talvez, a política se realizará sem partidos, por enquanto, numa república democrática (ao contrário de numa ditadura), ninguém governa sem um partido, pois é este que cria e prepara quadros para as funções governamentais para a concretização dos objetivos e das metas dos governantes eleitos. Bastaria que os manifestantes se informassem sobre o governo Collor para entender isso: Collor partiu das mesmas afirmações feitas por uma parte dos manifestantes (partido político é coisa de “marajá” e é corrupto) e se apresentou como um homem sem partido. Resultado: não teve quadros para montar o governo nem diretrizes e metas coerentes e deu feição autocrática ao governo, isto é, “o governo sou eu”. Deu no que deu.

Além disso, parte dos manifestantes está adotando a posição ideológica típica da classe média, que aspira por governos sem mediações institucionais, e, portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que “meu partido é meu país”, ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os partidos políticos.

Assim, em lugar de inventar uma nova política, de ir rumo a uma invenção democrática, o pensamento mágico de grande parte dos manifestantes se ergueu contra a política, reduzida à figura da corrupção. Historicamente, sabemos onde isso foi dar. E por isso não nos devem surpreender, ainda que devam nos alarmar, as imagens de jovens militantes de partidos e movimentos sociais de esquerda espancados e ensanguentados durante a manifestação de comemoração da vitória do MPL. Já vimos essas imagens na Itália dos anos 1920, na Alemanha dos anos 1930 e no Brasil dos anos 1960-1970.

Conclusão provisória

Do ponto de vista simbólico, as manifestações possuem um sentido importante que contrabalança os problemas aqui mencionados.

Não se trata, como se ouviu dizer nos meios de comunicação, que finalmente os jovens abandonaram a “bolha” do condomínio e do shopping center e decidiram ocupar as ruas (já podemos prever o número de novelas e minisséries que usarão essa ideia para incrementar o programa High School Brasil, da Rede Globo). Simbolicamente, malgrado eles próprios e malgrado suas afirmações explícitas contra a política, os manifestantes realizaram um evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos Poderes Executivos municipais, estaduais e federal, assim como as do Poder Legislativo nos três níveis. Praticando a tradição do humor corrosivo que percorre as ruas, modificaram o sentido corriqueiro das palavras e do discurso conservador por meio da inversão das significações e da irreverência, indicando uma nova possibilidade de práxis política, uma brecha para repensar o poder, como escreveu um filósofo político sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Europa.

Justamente porque uma nova possibilidade política está aberta, algumas observações merecem ser feitas para que fiquemos alertas aos riscos de apropriação e destruição dessa possibilidade pela direita conservadora e reacionária.

Comecemos por uma obviedade: como as manifestações são de massa (de juventude, como propala a mídia) e não aparecem em sua determinação de classe social, que, entretanto, é clara na composição social das manifestações das periferias paulistanas, é preciso lembrar que uma parte dos manifestantes não vive nas periferias das cidades, não experimenta a violência do cotidiano experimentada pela outra parte dos manifestantes. Com isso, podemos fazer algumas indagações. Por exemplo: os jovens manifestantes de classe média que vivem nos condomínios têm ideia de que suas famílias também são responsáveis pelo inferno urbano (o aumento da densidade demográfica dos bairros e a expulsão dos moradores populares para as periferias distantes e carentes)? Os jovens manifestantes de classe média que, no dia em que fizeram 18 anos, ganharam de presente um automóvel (ou estão na expectativa do presente quando completarem essa idade) têm ideia de que também são responsáveis pelo inferno urbano? Não é paradoxal, então, que se ponham a lutar contra aquilo que é resultado de sua própria ação (isto é, de suas famílias), mas atribuindo tudo isso à política corrupta, como é típico da classe média?

Essas indagações não são gratuitas nem expressão de má vontade a respeito das manifestações de 2013. Elas têm um motivo político e um lastro histórico.

Motivo político: assinalamos anteriormente o risco de apropriação das manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. Só será possível evitar esse risco se os jovens manifestantes levarem em conta algumas perguntas:
  1. estão dispostos a lutar contra as ações que causam o inferno urbano, e portanto enfrentar pra valer o poder do capital de montadoras, empreiteiras e cartéis de transporte, que, como todos sabem, não se relacionam pacificamente (para dizer o mínimo) com demandas sociais?
  2. estão dispostos a abandonar a suposição de que a política se faz magicamente sem mediações institucionais?
  3. estão dispostos a se engajar na luta pela reforma política, a fim de inventar uma nova política, libertária, democrática, republicana, participativa?
  4. estão dispostos a não reduzir sua participação a um evento pontual e efêmero e a não se deixar seduzir pela imagem que deles querem produzir os meios de comunicação?

Lastro histórico: quando Luiza Erundina, partindo das demandas dos movimentos populares e dos compromissos com a justiça social, propôs a Tarifa Zero para o transporte público de São Paulo, ela explicou à sociedade que a tarifa precisava ser subsidiada pela prefeitura e que não faria o subsídio implicar cortes nos orçamentos de educação, saúde, moradia e assistência social, isto é, dos programas sociais prioritários de seu governo. Antes de propor a Tarifa Zero, ela aumentou em 500% a frota da CMTC (explicação para os jovens: CMTC era a antiga empresa municipal de transporte) e forçou os empresários privados a renovar sua frota. Depois disso, em inúmeras audiências públicas, apresentou todos os dados e planilhas da CMTC e obrigou os empresários das companhias privadas de transporte coletivo a fazer o mesmo, de maneira que a sociedade ficou plenamente informada quanto aos recursos que seriam necessários para o subsídio. Ela propôs, então, que o subsídio viesse de uma mudança tributária: o IPTU progressivo, isto é, o imposto predial e territorial seria aumentado para os imóveis dos mais ricos, que contribuiriam para o subsídio junto com outros recursos da prefeitura. Na medida que os mais ricos, como pessoas privadas, têm serviçais domésticos que usam o transporte público e, como empresários, têm funcionários usuários desse mesmo transporte, uma forma de realizar a transferência de renda, que é base da justiça social, seria exatamente fazer com que uma parte do subsídio viesse do novo IPTU.

Os jovens manifestantes de hoje desconhecem o que se passou: comerciantes fecharam ruas inteiras, empresários ameaçaram lockout das empresas, nos“bairros nobres” foram feitas manifestações contra o “totalitarismo comunista”da prefeita e os poderosos da cidade “negociaram” com os vereadores a não aprovação do projeto de lei. A Tarifa Zero não foi implantada. Discutida na forma de democracia participativa, apresentada com lisura e ética política, sem qualquer mancha possível de corrupção, a proposta foi rejeitada. Esse lastro histórico mostra o limite do pensamento mágico, pois não basta ausência de corrupção, como imaginam os manifestantes, para que tudo aconteça imediatamente da melhor maneira e como se deseja.

Cabe uma última observação: se não levarem em consideração a divisão social das classes, isto é, os conflitos de interesses e de poderes econômico-sociais na sociedade, os manifestantes não compreenderão o campo econômico-político no qual estão se movendo quando imaginam estar agindo fora da política e contra ela. Entre os vários riscos dessa imaginação, convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com muita garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência.
------------------------------
*Marilena Chaui é filósofa, professora na FFLCH da Universidade de São Paulo