João Pereira Coutinho*
Não, aquilo que une os europeus não é a União Europeia, o
euro e outras construções burocráticas
Estou sentado num café no centro de
Lisboa. Sobre a mesa, os jornais do dia. Então um cavalheiro aproxima-se da
minha mesa, olha para os jornais e pergunta: "São da casa?".
Eu sorrio, digo que não, que são meus, mas
disponibilizo a prosa na mesma. O homem agradece, escolhe um deles, afasta-se e
começa a leitura matinal. Então eu penso: isto é a Europa.
Penso eu e pensa George Steiner, em pequeno
ensaio que recomendo. Intitula-se "A Ideia de Europa", foi uma conferência
célebre proferida por Steiner no Instituto Nexus, da Holanda, e a ambição do
autor era a de encontrar o patrimônio cultural que une os europeus.
Steiner é magistral, na forma e no conteúdo:
não, aquilo que une os europeus não é a União Europeia, o euro e outras
construções burocráticas presentemente em crise.
A ligação fundamental encontra-se, antes, na
cultura, no pensamento e, enfim, numa certa forma de estar e de viver que,
embora possa ser exportada para outras latitudes, tem um berço
reconhecível.
Os cafés são um bom exemplo. As ilhas
britânicas podem ter os seus pubs. As cidades americanas podem ter um bar em
cada esquina. Mas os pubs e os bares não são os cafés de Lisboa, frequentados
por Fernando Pessoa. Nem os cafés de Odessa, povoados pelos gângsteres de Isaac
Babel.
Para Steiner, os cafés da Europa são lugares de
encontro, ociosidade, debate e até produção intelectual. Como escreve o autor,
podemos imaginar tudo num pub ou num bar. Não imaginamos a produção de uma obra
filosófica; um debate político intenso; o nascimento de um novo movimento
artístico; ou até, como agora, a simples partilha anônima dos jornais do dia
para acompanhar o café da manhã.
"...o continente europeu foi aquele
onde
era possível escutar Schubert ao jantar
e,
na manhã seguinte, gasear judeus
de consciência limpa."
A Europa são os seus cafés. E seria possível
escrever uma história cultural do continente atribuindo a Karl Kraus, a Carnap
ou a Musil o seu café particular, escreve Steiner.
Mas a ideia de Europa não se limita aos cafés.
Nessa ideia, está também a dimensão humana e histórica dos lugares. A Europa não
é percorrida por uma selva amazônica ou por um deserto do Saara. As suas
distâncias não são geológicas ou continentais.
A Europa, desde sempre, foi um território
pedestre, no sentido literal do termo: algo para ser descoberto a pé. As
distâncias são humanamente modestas. E, em cada rua ou praça, não temos a
classificação impessoal e numérica das grandes cidades americanas: Quinta
Avenida, Sexta, Sétima, e por aí afora.
Temos marcas literárias, políticas, artísticas,
de um continente saturado de passado. Steiner cita exemplos: rue Lafontaine,
place Victor Hugo, Pont Henri IV. Os europeus convivem diariamente -melhor:
caminham diariamente- pela evidência material e imaterial do que ficou para
trás.
Por fim, não interessa se você nasceu em
Lisboa, Paris ou Berlim. O europeu é sobretudo herdeiro de Atenas e Jerusalém:
da cidade terrestre e da cidade celeste; da tensão permanente entre a razão e a
fé; entre o espírito científico e as "intimações" da transcendência.
Foi desse diálogo, e até desse confronto, que
nasceu o melhor das artes e das letras. Um patrimônio que sobrevive até
hoje.
Claro que Steiner, o último grande humanista do
nosso tempo, também sabe que a ideia de Europa não se limita a páginas nobres: a
Europa foi igualmente o espaço de ódios viscerais e barbaridades sem
perdão.
Como Steiner repetidamente escreve em várias
das suas obras, o continente europeu foi aquele onde era possível escutar
Schubert ao jantar e, na manhã seguinte, gasear judeus de consciência
limpa.
Mas mesmo essa experiência negra conferiu aos
europeus um "sentido de finitude" apurado. É essa consciência assombrada que
distingue o homem europeu do otimismo fundacional que impera no Novo
Mundo.
Moral da história?
Todos os dias, o leitor é confrontado com
notícias apocalípticas sobre o futuro da União Europeia. E é possível que, lendo
essas notícias, o leitor cometa o erro mais comum sobre a matéria: confundir a
União Europeia com a Europa e os burocratas de Bruxelas com os europeus.
Nada mais falso. Ler George Steiner é
reaprender que a ideia de Europa é anterior à União Europeia. E que, aconteça o
que acontecer, essa ideia irá sobreviver a ela.
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* Jornalista, cientista político, escritor.
jpcoutinho@folha.com.brFonte: Folha on line, 27/11/2012
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