Na
minha primeiríssima e inesquecível - quem não se lembra de toda
primeira e última vez? - estada nos Estados Unidos, em 1963, eu - um humilde e
inseguro aprendiz de antropologia social numa portentosa Harvard - fiquei tão
chocado quanto deslumbrado quando ouvia meninos e meninas com 20 e poucos anos
de idade "discordarem" das ideias que saíam como cascata da obra dos grandes
gênios das ciências sociais. Especialmente dos seus inventores, aqueles
orgulhosos, persistentes, obsessivos e desafiadores Durkheim, Marx, Tocqueville,
Frazer, Hocart, Mauss, Tylor, Maine, Weber... que em vez de policiarem e
decretarem sobre o mundo, decidiram fazer o mais difícil: compreendê-lo em seus
próprios termos. Esse modo mais complexo e profundo de transformá-lo.
Eu ficava apatetado e cheio de culpa quando
meus colegas, uns merdinhas de olhos azuis claros como a inocência das louras
que clamavam terem sido estupradas por negros, diziam em alto e bom som: "Eu
discordo de Mauss!"; "Durkheim estava errado!"; "Preocupa-me a posição de
Weber!"; "Marx perdeu o bonde!"; e assim por diante.
O modo tranquilo com que meus colegas, debaixo
do olhar aprovador dos nossos professores, discordavam desses pioneiros me
perturbava, pois quanto mais originais eram suas teorias, mais eles eram
criticados. As opiniões não eram meras apreciações formais ou elogiosas de um
iniciante ajoelhado diante de um mestre, mas uma assertiva sempre negativa e
ostensivamente contrária ao que era discutido que, sendo boa ou profundamente
enganada, promovia a discussão das ideias gerais contidas no livro em debate.
Desse modo, todos (menos eu) faziam questão de bater de frente e essa atitude
que para mim, surgia como hipercrítica, e até mesmo agressiva, passava por um
crivo que eu não havia aprendido e certamente não existia no Brasil. O filtro de
um ponto de vista individual e não a perspectiva pessoal que tende a atenuar ou
arrefecer o debate e a apreciação do outro.
"Mas, entre um e outro, jamais
fazíamos
como aqueles meninos de Harvard
que tomavam um partido individual
relativamente
a cada autor e assim mediam suas
aversões e simpatias
às suas ideias, métodos
e teorias."
Entendi que estava no universo dos "eus". De
fato, o que eu mais ouvia era o pronome pessoal "I" (eu). Entendi por que em
inglês a primeira pessoa do singular, o "eu", é escrito com letra
maiúscula...
Nesse contexto, passei por uma experiência
decisiva.
Num seminário sobre a história da antropologia,
dirigido pela professora Cora Du Bois, uma pioneira, ao lado de Margaret Mead e
Ruth Bennedict na prática da antropologia social, uma mulher que havia feito
trabalho de campo na Ilha de Alor, na Indonésia, quando nós, no Brasil,
achávamos um problema ir a Niterói e impossível conhecer Manaus, eu apresentei
um desses autores clássicos. Não me lembro mais quem era, mas não me esqueci da
luz que essa experiência lançou na diferença entre o meu modo de aprender e o
dos meus colegas harvardianos. Pois quando terminei o meu resumo, recebi da
professora uma pergunta surpreendente.
- Sua apresentação está mais do que correta! -
disse Cora Du Bois -, mas o que eu quero mesmo é saber o que você pensa sobre as
teorias que acabou de apresentar.
A ênfase no "você" que individualizava e
buscava a minha opinião íntima - o sentimento de um "eu" que mal sabia era
autônomo e tomava partido - deixou-me embasbacado. Eu jamais havia pensado em me
distanciar e me individualizar diante do autor estudado. Pelo contrário, eu
havia feito exatamente o oposto e me identificava com ele preparando-me para
defendê-lo a todo custo. Jamais havia passado pela minha cabeça que era possível
e desejável formar uma opinião pessoal sobre ele e, eis o espanto, que essa
opinião, mesmo sendo a de um jovem iniciante, contava e a experiente e sábia
professora fazia questão de ouvi-la.
No Brasil eu era bamba em discutir ideias,
projetos, leis e sistemas políticos sem ser obrigado a tomar posição em relação
ao que estava em pauta. Aliás, o que eu aprendia era jamais criticar certos
autores e, pela mesma moeda, elogiar outros. Mas entre o lado direito e o
esquerdo, o alto e o baixo, o bom e o ruim não havia nenhum espaço para dizer o
que eu realmente pensava de cada um deles.
Meu aprendizado não era individual. Era pessoal
e grupal no sentido de que cada grupo ou turma tinha seus padrinhos e heróis,
bem como seus inimigos e bandidos, como figuras para serem idolatradas e
admiradas, a ponto de jamais serem apreciadas de modo individualizado. Sabíamos
definir socialismo e liberalismo, mas não aprendíamos a tomar uma posição sobre
cada um desses sistemas - e a exprimir o que eles diziam para cada um de
nós.
Éramos, como ocorre em tantas outras esferas da
vida social brasileira (e, imagino, latino-americana), contra ou a favor. Não
líamos Marx, éramos marxistas! Ou reacionários, porque simpatizávamos com
Durkheim, que jamais falou em luta de classes. Mas, entre um e outro, jamais
fazíamos como aqueles meninos de Harvard que tomavam um partido individual
relativamente a cada autor e assim mediam suas aversões e simpatias às suas
ideias, métodos e teorias. E isso, parece, faz diferença. A diferença entre a
repetição e o modismo e a verdadeira
criatividade.
* Antropólogo. Prof. Universitário.
Escritor. Colunista do Estadão
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