sábado, 31 de agosto de 2013

" Quando setembro chegar "

SETEMBRO

                            SETEMBRO  muito feliz a todos leitores,
                estarei off line,em férias.
                                
                        
                                              Abraço a todos,e até a volta!

" Lya Luft revê sua trajetória e o impacto da infância e da família em seus livros "

Lya Luft revê sua trajetória e o impacto da infância e da família em seus livros
Lya Luft revê sua trajetória e o impacto da infância e da família em seus livros Fernando Gomes/Agencia RBS

O lado avesso me fascina', diz a escritora sobre a escolha dos temas de seus livros

Ao longo de uma carreira que já soma cinco décadas, foram várias as reinvenções de Lya Luft. De poeta e autora de crônicas que ela mesma considera ingênuas hoje, passou a romancista conceituada com a publicação de As Parceiras, em 1980, seguida de uma produção romanesca intensa e prolífica. Depois de uma série de dificuldades pessoais que a afastaram por um tempo da escrita, ela novamente se reinventou no alvorecer do século 21, desta vez como ensaísta best-seller após a publicação de Perdas & Ganhos. E finalmente deixou aflorar um lado mais brincalhão e menos trágico em histórias voltadas para crianças – escritas para suas netas. Em sua casa, em Porto Alegre, Lya falou ao Cultura nesta que é a quinta entrevista da série Obra Completa, que vem publicando mensalmente entrevistas críticas com grandes autores do Estado.

Cultura – A carreira da senhora começa com a publicação de um livro de poesia. Quando passa a se dedicar à prosa, publica um livro de crônicas e, só mais tarde, dedica-se ao romance, forma predominante em sua carreira. A senhora está testando seu fôlego narrativo?Lya Luft – Sempre quis escrever histórias. Era muito meninota, em Santa Cruz do Sul, e traduzia os livros infantis que lia em alemão. Sempre inventei histórias, mas nunca achei que seria escritora. Queria entender o mundo e achava que as respostas estavam nos livros. Então, eu lia feito louca. Fiz uma faculdade, fiz outra, aprendi que as respostas não estão em lugar nenhum. Depois, uma amiga me disse “Escuta, tem um concurso do IEL, manda tuas poesias”. Mandei, ganhei o prêmio, e o livro demorou a ser editado, saiu só em 1964. Comecei a trabalhar como tradutora quando a Editora Globo ainda fazia aquelas grandes coisas. Continuei trabalhando com isso, chamada por outras editoras, e fazendo poesia. E aí me deram uma coluna no Correio do Povo, que se chamava Poliedro, acho. Lendo essas crônicas muito mais tarde, achei tudo muito besta, muito cor-de-rosa, “ai, minha família”, “a lua”, coisa muito leve. E continuei a fazer poesia. Depois, o Leopoldo Boeck, da Sulina, fez uma coleção chamada Poetas Hoje, tinha livro do Carlos Nejar, Itálico Marcon. Aí, juntei uns poemas e saiu o Flauta Doce.

Cultura – E em que momento a senhora chega à prosa de ficção?Lya – A Lygia Fagundes Telles, sobre cujo romance As Meninas fiz mestrado de Literatura Brasileira, ficou minha amiga. Acho que As Meninas é um dos grandes romances brasileiros esquecidos, aquela linguagem dela... E um dia ela me disse: “Lya, você devia escrever prosa”. Aí, resolvi escrever o que achei que era uma novelinha, um pequeno romance que chamei O Túnel, um título bem besta e que era algo muito no estilo da prosa poética. Mostrei para um escritor que eu admirava muito, ele leu e disse: “Olha, Lya, está muito bonito, tu escreves muito bem, mas isto aqui não é ficção, não acontece nada”. Botei fora. Uma pena, hoje eu gostaria de dar uma olhada. Eu devia ter uns 27 anos. Aí, resolvi escrever contos, porque achava que tinha pouco fôlego. Sou prolixa para falar, mas lacônica para escrever. Já estava traduzindo para a Nova Fronteira, então mandei para o Pedro Paulo Sena Madureira, que era o grande editor naquela época. E ele, depois de uns dias, telefonou-me e disse: “Lya Luft, seus contos são todos publicáveis, eu posso publicar”. Aí eu disse: “Mas não quero ser ‘publicável’, se é só isso, não publique”. E ele me respondeu: “Mas você é romancista, todos os contos são romances abortados. Sente e escreva um romance”.

Cultura – E de onde vinha a impressão de que sua prosa tinha fôlego curto?Lya – Eu era muito tímida intelectualmente. Casei-me com o Celso Pedro Luft – eu tinha 24 anos, e ele, 42 e já era uma sumidade. E, de repente, os meus amigos eram Guilhermino César, Maurício Rosenblatt, Erico Verissimo... Saltei uma geração, então ficava quietinha escutando. Nesse meio-tempo, já lecionava, era professora de Linguística, mas não era minha vocação. Depois, tive um problema, um acidente, comoção cerebral. Fiquei gaga, desmemoriada durante um ano. Pedi demissão da faculdade e pensei: por que não escrevo de uma vez um romance? Se ninguém quiser editar, não se perde nada. Sentei e escrevi As Parceiras. Quando terminei, resolvi mostrar para o Celso, meu marido, meu mestre. Ele pegou, foi ler na varanda. E quando ele terminou, me entregou e disse: “Tá muito bom...”. Aí, mandei o romance para o Pedro Paulo Madureira por meio de uma escritora, Rachel Jardim, que era filiada àquele memorialismo mineiro bonito, A Cristaleira Invisível... Ela pôs o livro na mesa do Pedro Paulo, e ele me ligou dizendo: “Lya Luft, quero publicar esse romance e todos os que você escrever”. Saiu o livro no começo de 1980 e, de repente, eu era uma romancista. Comecei a escrever um livro atrás do outro, porque abriu aquela porta e veio uma enxurrada que estava reprimida. Eu escrevia, escrevia, escrevia, lançava um livro por ano.

Cultura – Em As Parceiras, estabelece-se uma visão que vai acompanhar toda a sua obra, a da família como um núcleo não de proteção, mas de opressão. Qual a origem dessa concepção?
Lya – É engraçado, porque as pessoas que leram As Parceiras e A Asa Esquerda do Anjo comentavam: “Coitada da Lya, deve ter tido uma infância muito infeliz, que desgraça”. E aí vai algo dos meus dois mundos, é algo que digo sempre: “Tenho um olho alegre que vive e um olho triste que escreve”. Na minha vida pessoal, não sou uma pessoa dramática. Mas tenho dentro de mim uma visão muito triste do drama existencial humano. Tive uma vida muito legal, uma infância protegida, pai, mãe, irmão pequeno, casa boa, vida no interior, brincando na calçada. Mas acho que a gente já nasce feito. Eu era muito observadora, e percebia: “Ah, aquela tia não gosta daquela avó...”. Esse mundo me fascinava, até hoje ainda me fascina. Porque eu fui infeliz? Não. Mas eu era uma criança que tinha muito medo, provavelmente porque tinha muita imaginação. Tinha medo do escuro, do fundo do corredor, de algumas casas... No romance Reunião de Família, usei uma epígrafe do Miguel Torga: “Sinto medo do avesso”. É o lado avesso da vida que me fascina. Nunca vou escrever um romance alegre. Até escrevi coisas divertidas, os livros das bruxas são meu lado gaiato, mas são para crianças.

Cultura – Essa imagem do “lado avesso” é recorrente em sua obra. No próprio Reunião de Família, a construção ficcional mostra que os personagens vão revelando seus “outros lados”. A senhora também escreveu um livro de poemas chamado O Lado Fatal. O objetivo é tentar expressar uma visão do ser humano como um ente compartimentado?
Lya – Acho que sim. Somos muito ambíguos, e nossa vida é toda muito ambígua. Sou uma pessoa extremamente ligada à família. É uma coisa de que eu preciso muito. Mas, por outro lado, sei que a maior parte das vidas das famílias é muito complicada. Vivo muito a ambiguidade. Minha mãe dizia: “A Lya está sempre no mundo da lua”. São meus dois lados. O lado do mundo da lua escreve.

Cultura – As Parceiras também inaugura um procedimento que a senhora repete ao longo da sua obra: é a memória do personagem que constrói o romance. A senhora falou há pouco do acidente que a deixou desmemoriada. Isso talvez explique um pouco esse uso da memória em sua ficção?
Lya – Nunca pensei nisso, mas é possível. Neste novo livro que está em progresso, digo que o tempo corrói tudo, mas a memória é a guardiã da vida. Dou muito valor à memória, mas não sou uma pessoa saudosista. A infância era boa, mas era muito chata, todo mundo mandava em mim.

Cultura – A Asa Esquerda do Anjo se estrutura em torno do embate entre a matriarca Frau Wolf e sua nora brasileira. É uma representação da resistência da cultura germânica a ser assimilada na experiência da imigração?
Lya – O pessoal de Santa Cruz ficou muito chateado comigo na época, acharam que eu estava tentando retratar a vida das famílias de lá, o que é uma besteirada. Claro que sempre há a figura de velhas avós, tinha uma avó matriarca, mas ela não era a Frau Wolf, a frau Wolf é um monstro. Eu não tive uma prima linda que tocava violoncelo. A minha ficção não é uma coisa tão simples que eu pegue fulano, fulano e fulano e bote num livro. Mas sempre fui rebelde. Se me dissessem que não podia passar dali, era dali que eu ia passar. Achava muito chata aquela rigidez. Com uma das minhas avós, eu tinha que falar só em alemão quando pequena, porque ela achava que português era um idioma de pessoas inferiores, e eu achava aquilo horrível. E aquelas velhas primas, porque em cidade do interior todo mundo é primo, falavam: “Nós, os alemães, e eles, os brasileiros”. E eu dizia: “Não, eu sou brasileira, eu nasci aqui”. Meus avós nem conheceram a Alemanha. Fui conhecer com mais de 40 anos... Na minha casa, não havia essas duas divisões fortes na região naquela época: os protestantes e os católicos, os brasileiros e os alemães. Isso era também uma ficção. Então, coloquei nesse livro como um símbolo de isolamento, de solidão, de rigidez, essa questão da educação. Que foi em parte a minha educação, não com aquele exagero que pus no livro, mas que era: “senta direito”, “faz isso”, não faz aquilo”, “não te queixa”. Então, nesse romance acho que coloquei a minha rebeldia contra isso.

Cultura – Em Reunião de Família, o pai reúne uma série de imagens de autoridade. É uma forma de concentrar esse questionamento à autoridade que a senhora comentou há pouco?
Lya – Acho que sempre fui contra a autoridade, sempre fui anárquica. Não desses que andam por aí de máscara preta quebrando os troços. Sempre fui muito rebelde, e a minha rebeldia era das pequenas coisas: por que tenho que dormir às sete e meia, por que não pode comer tal coisa? E a minha mãe dizia: “Criança não pensa, criança não tem querer, quem manda é o adulto”. Todos os meus livros são rebeldia contra a autoridade e contra a morte.

Cultura – Até A Sentinela, os homens em sua ficção são encarnações da autoridade patriarcal, tirânica e severa. Nesse livro, o pai Mateus é uma figura mais doce e dominada pela mulher exigente. Qual a origem dessa mudança de representação?Lya – Nunca havia pensado nisso, mas é verdade. A única coisa de que me dei conta é que a personagem principal, a Nora, que foi submetida a várias fatalidades, coisas de tragédia grega, como em geral em todos os meus romances, é a minha única personagem até ali que ensaia uma volta por cima, inclusive na aceitação do filho homossexual. Essa coisa da figura masculina diferente, eu não havia percebido antes. Na verdade, a minha visão do masculino, e por isso algumas amigas mais feministas implicam comigo, é muito positiva. Meu pai foi uma influência muito positiva em minha vida. Ele era um homem muito autoritário, mas, ao mesmo tempo, muito liberal. Foi ele que me formou. E tenho dois filhos homens. E estou no terceiro casamento, e nunca tive na minha vida o homem boçal, o homem autoritário que te cobra e quer te podar. Meus três maridos sempre foram pessoas que me empurraram para frente e para cima. Mas vejo muita coisa, não escrevo sobre minha vida particular. Vi muitos homens autoritários, manipuladores, irônicos, críticos. E também muita mulher chata, que cobra, que corrói... A relação humana é muito difícil.

Cultura – Em vários de seus livros, repete-se o mote do jogo infantil, uma brincadeira de criança que tem como origem um elemento sombrio e profético. Em Reunião de Família, é o “jogo do espelho”, uma brincadeira de derrisão da identidade. Em O Quarto Fechado, há o “jogo da morte”, em que a protagonista finge que está morta. As brincadeiras em seus livros encenam os terrores da vida?
Lya – Acho que sim, que os jogos de infância são muito simbólicos. Eu me fingia de cega quando era criança, andava dentro de casa de olhos fechados. Acredito que muitos jogos infantis (que eu não sei se ainda se fazem tantos), as canções, os contos clássicos, que eram tradição oral antes de os Irmãos Grimm e do Andersen transformarem em histórias, são todos altamente psicológicos. A criança encena em seus brinquedos, é tudo muito adulto.

Cultura – Isso explica por que, em algumas de suas histórias narradas por crianças, a voz narrativa é madura?
Lya – Um dos meus livros de que eu mais gosto, que fiquei muito tempo querendo escrever e demorei para começar, é O Ponto Cego. Queria escrever a história das famílias desgraçadas pelo ponto de vista de uma criança. Mas não achava o tom. Não queria escrever com a linguagem de uma criança. Como a literatura me dá liberdade, acabei usando uma criança com linguagem adulta. Gosto muito do pobrezinho daquele menino, que quis enganar o tempo, e o tempo lhe passou uma rasteira. Sempre tem a criança, mas não só uma criança. Também porque, em O Ponto Cego, ele é um pequeno adulto. Quando comecei a escrever esse livro, falei com a minha filha, Susana, que é médica pediatra: “Sabe que eu estou escrevendo um livro com um menino, uma criança, e que, de repente, o organismo dele acelera e ele fica velhinho em poucos anos...”. E ela me disse: “Mãe, isso existe, é uma doença chamada progéria”.

Cultura – Sua obra inicial enfoca a mulher perplexa em se perceber como o “outro” na sociedade patriarcal. Nesse sentido, seus livros são feministas?
Lya – O termo está um pouco desgastado, não? Se ser feminista é valorizar a mulher, eu nasci feminista. Mas a minha obra, meu trabalho, minhas palestras, sempre foram no sentido da dignidade. Da mulher, do homem, da criança, do negro, do branco, do amarelo, do anão, não importa. Nunca fui engajada, mas, para mim, era natural que as mulheres fossem respeitadas. Eu sabia que não eram, eu via que não eram, mas queria que fossem. Mas acho meio pobre dizer “literatura feminista”, porque isso tudo já passou. Teve uma época em que eu ia para os Estados Unidos, era convidada para aqueles congressos feministas, e achava tudo muito chato. As mulheres eram tão bravas, havia tanto ódio, tanto rancor. Até acho que tinha razão de ser, mas eu não era tão radical, também achava que os homens eram uns coitados. A vida é difícil para todo mundo. Acho a vida dos homens mais solitária do que a das mulheres. Porque as mulheres têm a amiga, a comadre, se falam, as mulheres confidenciam, há uma solidariedade no sentido emocional que não sei se os homens têm.

Cultura – Nos anos 2000, a senhora deu uma pausa na ficção longa. Publicou ensaios, poesia, crônicas, um livro de contos que sai 10 anos depois de Perdas & Ganhos. Por que esse hiato?
Lya – Não tenho a menor ideia. Se soubesse, teria escrito. O Silêncio dos Amantes acho que comecei escrevendo como um romance que virou um conto, aí fiz outros contos que talvez fossem capítulos de um romance, foi uma coisa meio confusa, isso eu me lembro. E bem depois apareceu O Tigre na Sombra, porque as histórias me aparecem. Fico muito quieta, pensando, e esse pensar, de coisas meio vagas, é como se aparecessem uns bonequinhos que eu vou pendurando no varal, e eles ficam me fazendo caretas. Aí, um deles, de repente, me fascina. Foi assim com todos os meus livros. Quando escrevi Reunião de Família, estava meio cansada de escrever em sequência dois romances de pessoas sofredoras, puxando angústias. Quis fazer uma personagem que fosse a típica pacata dona de casa, a que tem varizes, que vai na feira com a sua sacola de verduras. Só que – e a minha literatura nasce muito do “só que” e do “e se” – me perguntei: “E se essa pacata dona de casa for uma falsa pacata dona de casa, que, no fundo, tem um universo diabólico?”. E aí apareceu a Alice do Reunião de Família.

Cultura – Em sua obra não ficcional recente, como Múltipla Escolha, a senhora parece olhar em volta e alega sentir falta de uma ordem segura de valores.
Lya – Hoje está tudo muito bagunçado, e estou achando tudo muito chato. As crianças mal-educadas, os adolescentes desorientados. Acho que tem mais é que se manifestar, tem muita coisa muito ruim, se eu fosse mais moça, iria para a rua. Mas a expressão de ódio que vejo quando eles estão destruindo coisas... Isso acho meio demais. Passamos de rigidez demais para um endeusamento da juventude. Sinto falta de um meio-termo que não sei se teremos no meu tempo de vida. Podem cuspir em cima de mim, mas quem é que põe uma certa ordem? Não tem. Então, o pessoal está reclamando de coisas completamente loucas. Algumas são justas, mas outras são malucas. Sinto falta de certa ordem e não vejo uma saída tão cedo para isso.

" Aspiracional " < Cláudia Laitano >



Publicitários sabem que não basta dizer que uma cerveja é boa ou que um banco vai cuidar bem do seu dinheiro. É preciso dizer isso de forma a seduzir o cliente em potencial – e para tanto deve-se oferecer mais do que uma simples informação. O que, em uma propaganda de banco ou cerveja, pode prometer mais do que um bom serviço ou uma boa bebida? É justamente essa a alma do negócio.

Não por acaso, é nesse ambiente do marketing e da propaganda que o termo “aspiracional” tornou-se mais comum. Levar em conta a “aspiração” de um determinado público é entender que você pode atingi-lo não apenas pelo que ele é, mas pelo que ele gostaria de ser.

Apesar de ter sido cooptado pelo universo do consumo, o termo se encaixa em aspectos da nossa vida que vão além da imagem que gostaríamos de passar comprando um determinado modelo de carro ou usando um determinado tipo de roupa.

Somos seres aspiracionais por excelência em quase todas as nossas escolhas: as pessoas por quem nos apaixonamos, a profissão que escolhemos, a escola em que matriculamos nossos filhos. Há em cada uma dessas decisões o componente não totalmente racional do desejo de atingirmos uma versão melhor e mais caprichada de nós mesmos, através da associação com pessoas, atividades ou instituições que admiramos.

Na última segunda-feira, no seminário Fronteiras do Pensamento, o filósofo australiano Peter Singer apresentou uma síntese de suas ideias sobre temas contemporâneos que colocam em xeque nossas convicções e nossa noção de responsabilidade. Poderíamos qualificar a ética prática de Singer como “aspiracional”.

Algumas das atitudes que ele propõe – doar parte do seu dinheiro para quem não tem nada, cuidar seriamente da saúde do planeta abrindo mão de alguns luxos ou evitar o sofrimento desnecessário de animais – parecem exóticas e extremas para a maioria das pessoas, o próprio filósofo admite. Mas se nem todos têm intenção de destinar 10% da sua renda para diminuir a miséria do mundo ou cogitam abrir mão do churrasco de domingo, apenas o exercício de pensar sobre isso talvez seja capaz de ampliar o “aspiracional moral” que nos serve de referência.

Um dos méritos da ética pragmática de Peter Singer é o de propor que cada um reflita seriamente sobre o que considera uma vida boa e justa e o que tem feito para atingi-la. Quem não faz esse exercício com alguma frequência sempre corre o risco de acomodar-se no extremo oposto – encontrando argumentos cada vez melhores e mais sensatos para ser e fazer muito menos do que aquilo que seria apenas o mínimo.

" Escravos Cubanos " < por Walcyr Carrasco >



Se vêm para trabalhar, os médicos não deveriam estar submetidos às leis brasileiras?
Meus avós vieram da Espanha no início do século XX. Todos, por parte de pai e mãe. Foram trabalhar em plantações de café e nunca mais voltaram para sua pátria original. O Brasil se tornou sua pátria. Sempre brinquei comigo mesmo que poderia ter nascido espanhol. Tenho, é claro, uma afinidade grande por esse país. Até orgulho da arquitetura espanhola, da arte, da literatura, do sucesso da gastronomia. Picasso, afinal de contas, não era espanhol? Mas, quando meus avós desembarcaram, imediatamente assumiram que este era seu país. Aqui viveriam, teriam seus filhos, construiriam seu futuro.

Já observei levas de imigração, inclusive para fora do país. Quando jovem, passei alguns anos no exterior. Nos Estados Unidos, cruzei com muitos brasileiros que haviam decidido se tornar americanos. Inclusive mudando de condição social. Estudantes de classe média se tornavam garçons, motoristas de limusine. Um amigo jornalista, casado com uma americana, foi trabalhar em telefonia, instalando fios, aparelhos, sem a menor frustração. Todos agiram como meus avós: submeteram-se às leis da nova pátria.

Tenho um amigo brasileiro, que também tem nacionalidade belga. Vive parte do ano em Paris. Exatamente cinco meses. Se ficar seis, ganha o direito de residência e, consequentemente, a obrigação de pagar impostos. Não só do que ganhar lá, como de suas rendas no Brasil. Foge da residência francesa que, no passado, foi símbolo de status, mas hoje, em seu entender, lhe causaria um rombo financeiro.

Sempre admirei meus avós pela coragem. Fico me perguntando: como alguém sobe num navio, rumo a um país desconhecido, deixa a família, para um futuro incerto? Italianos, japoneses fizeram isso. Judeus sobreviventes do Holocausto também vieram para cá. Todos vivem ou viveram de acordo com as leis nacionais.

De repente, levei um susto. Surge agora uma leva de imigrantes, os médicos cubanos, que se mudam para cá, mas que não viverão sob as leis brasileiras? O regime trabalhista nacional é severo. E, na minha opinião, antigo, ultrapassado, porque não prevê situações que surgiram com a evolução da sociedade. Tive uma amiga que era dona de um salão de beleza. Cabeleireiros e manicures costumam ser uma espécie de associados do salão. O empresário monta a estrutura. Os profissionais ganham uma boa percentagem por corte e por unhas, de 40% a 60%.

Mas a lei trabalhista não prevê esse tipo de situação. Depois de três meses, o profissional passa a ter uma relação estável. E processa quando vai embora, em cima de direitos sobre seus ganhos. Minha amiga levou uns três ou quatro processos. Teve de fechar o salão. Há outras profissões em que acontece o mesmo. A combinação é uma, mas depois de algum tempo é caracterizada a estabilidade, e o empregador perde qualquer processo.

Os médicos cubanos estão vindo sob outra lei. O salário deles será pago ao governo de Cuba. E o governo repassará uma percentagem aos profissionais. Estrategicamente, chamou-se de “bolsa”. Bolsa é algo que se oferece a estudantes que vão estudar, fazer especialização, se aprimorar enfim. Os médicos vêm para trabalhar ou não? É óbvio, isso não é bolsa coisa nenhuma. É um truque semântico. Se vêm para trabalhar, não deviam estar submetidos às leis brasileiras? O argumento é que Cuba já fez esse acordo com outros países.

E daí? O que eu, cidadão, que pago meus impostos, tenho a ver com isso? Nosso governo resolveu ajudar financeiramente Cuba por meio dessa estratégia? Nosso dinheiro está sobrando? Como, se sentimos falta de tudo: segurança, hospitais, escolas? Pior que isso, se Cuba se acha no direito de vender seus cidadãos, nós, brasileiros, devemos concordar? Os médicos que se danem?

Esses médicos não formarão laços com o país, como meus avós fizeram. Estarão aqui de passagem, pois suas famílias ficarão em território cubano (reféns?). Como fincar raízes? Como amar seus pacientes, se dedicar, se não têm a dignidade de receber seu salário diretamente, como qualquer um que trabalha e vive no Brasil?

O Ministério Público contesta a questão salarial na vinda dos médicos cubanos. Ainda bem que temos um Ministério Público atuante. Mas como um governo democrático aceitou uma coisa dessas? Eu pensava que a escravidão havia acabado. Constato que os médicos cubanos se tornaram um novo tipo de escravo, vendido pelo seu país, a quem aceita pagar.

" Jeito de estudar e aprender "

Em busca do jeito certo de aprender Divulgação/Divulgação
Seu mais novo livro, Meu filho não quer estudar, foi lançado em 2013 pela Editora Autonomia Foto: Divulgação / Divulgação
A experiência individual que teve ao desenvolver seu próprio método de estudo para o vestibular foi inspiração para Fabio Mendes abrir o negócio que hoje atua: o ensino da aprendizagem.
Graduado, mestre e doutor em filosofia, além de graduado em direito pela UFRGS, ele atua como consultor de escolas públicas e privadas sobre métodos de estudo e autonomia na aprendizagem. O trabalho que realiza desde 2007 lhe rendeu, inclusive, o Prêmio de Educação oferecido pelo Sindicato dos Professores do Ensino Privado do RS (Sinpro-RS), e o levou a abrir a própria editora.

Com cinco livros publicados sobre o tema, ele tem como foco mostrar que os alunos podem criar as próprias regras para o estudo, em vez de seguir as normas alheias. Confira na entrevista a seguir como você pode ajudar seu filho a descobrir a melhor forma de estudar.

Seu mais novo livro, Meu filho não quer estudar, foi lançado em 2013 pela Editora Autonomia.

Vida — Por que o estudo geralmente representa um assunto de conflito entre pais e filhos?

Fábio Ribeiro Mendes — Dentro da maioria das atividades comuns, não há parâmetros para avaliação do desempenho. Na escola, as notas são um sinalizador de ir bem ou não. Por isso, vira uma zona de divergência algo que deveria ser de convergência de trocas. Muitos pais têm dificuldade de se colocar no lugar dos filhos porque o mundo mudou, e eles não souberam se adaptar a essas mudanças.

Vida — Muitos pais cobram estudo de seus filhos mas esquecem de adaptar o melhor local, horário e, principalmente, metodologia de estudo.

Mendes — Sim, os indivíduos são diferentes e precisam algumas adaptações, mas isso não significa que vale tudo. A direção é um exemplo. Os pais têm o direito e o dever de dar as diretrizes e ensinar qual a forma correta de dirigir, mas os filhos farão de acordo com o seu jeito e sua característica. Muitas vezes, faltam aos pais ferramentas para ajudar os filhos como estudar melhor, de forma mais assertiva. O que está em questão não é dar ou não dar limites, mas em que medida serão esses limites.

Vida — No livro, você diz que se os pais não tiverem nada para ensinar, seus filhos aprenderão sozinhos, com a facilidade da internet e das redes sociais. O que isso representa para os pais e professores?

Mendes — As tecnologias de informação são ferramentas, assim como outras que existem por aí. Sozinhas, elas não têm utilidade. São extremamente poderosas, mas também podem causar danos. Não significa que, se um aluno sabe acessar o Facebook, sabe usá-lo devidamente. Assim como pode ampliar o conhecimento pode amputar partes importantes do aprendizado. Os filhos estão pedindo limites e há muitos pais que não estão sabendo dar. Se uma criança não sabe estudar com um livro, não é o Google que vai ensinar ela a transformar informação em conhecimento. Também é importante ter parâmetros e restringir limites. Os pais não devem cortar totalmente, mas sim ensinar os filhos a terem moderação no tempo de uso.

Vida — Ir bem no colégio não é sinônimo de dar-se bem na vida profissional. Que argumento os pais podem usar contra isso?

Mendes — Isso passa pela dificuldade dos pais e mestres mostrarem a utilidade do aprendizado. É preciso ensinar sobre como estudar. O foco do estudo não deve ser apenas no conteúdo, mas na habilidade de ter autonomia para enxergar problemas e soluções para estes problemas.

" As lições que o Esporte dá "

Maratona tem saída e chegada no Obelisco. Foto: Divulgação/ Yescom

Daniela Santarosa*
* Ex-editora do Vida e maratonista, Daniela vive correndo

 
" quando fortalecemos esse pilar, vem a inclusão e a cidadania "

Há uma imensidade de coisas que aprendemos ao inserir o esporte na nossa vida. Disciplina, humildade, concentração, resistência, gratidão, paciência, companheirismo, competitividade saudável, meritocracia, entre muitos outros valores jamais possíveis de assimilar via osmose, numa sala de aula de aula ou até em Harvard.

Fora essa revolução pessoal, existe a poderosa força de transformação social. Quem estuda o assunto é unânime em afirmar que criamos uma sociedade melhor, mais justa e mais saudável quando fortalecemos esse pilar, já que com o esporte vem a inclusão, a fuga das drogas e da criminalidade, o resgate da cidadania.

Na época que precede grandes eventos, como a Copa do Mundo e Olimpíadas, todos mencionam a importância de incentivar o esporte desde cedo e enaltecem a capacidade do brasileiro de se sair bem em diversas modalidades, do vôlei ao tênis, passando pela natação e pelo atletismo, sem esquecer, é claro, do velho e bom futebol.

A "pátria de chuteiras", porém, só tem investido fortemente nas últimas décadas na formação de jogadores do esporte bretão. Uma meia dúzia de patrocinadores são disputados taco a taco por todo o "resto". Quantos talentos já foram desperdiçados por conta da falta de visão empresarial e de incentivos governamentais?

Um dos ídolos máximos do tênis mundial, Gustavo Kuerten, criticou recentemente, em entrevista ao Esporte Espetacular, exatamente esta carência em solo brazuca: falta o trabalho nas categorias de base, algo só feito com mais consistência nos aspirantes a Neymar.

O atletismo — ao meu ver, o rei de todos os esportes — é um dos que sofrem fortemente com a carência de incentivos precoces. Não se forma um atleta do dia pra noite. Uma medalha de ouro só é conquistada com anos e anos de treino diário, com treinadores qualificados e uma infraestrutura adequada. De nada adianta querer colher uma lavoura linda sem plantar — e cuidar dela diariamente, sem trégua.

Usain Bolt, Yelena Isinbayeva — que vimos brilhar no último Mundial de Atletismo, em Moscou —, César Cielo, da natação, Messi, Neymar, Cristiano Ronaldo e Ibrahimovic do futebol, Federer e Nadal do tênis, Sheilla e Giba, do vôlei. Até Anderson Silva ou Jon Jones, do MMA. Nenhum deles é um milagre. Todos são resultado de um trabalho contínuo, sério e árduo e, obviamente, de quantias razoáveis de tempo e dinheiro aplicados constantemente, desde a infância.

No dia em que esta consciência estiver arraigada na mente de quem cria as políticas de incentivo ao esporte — e que fique claro, não só na véspera de Olimpíadas e Copa — daremos um grande passo à frente.

Acreditar no poder de transformação do esporte jamais será um mau investimento.

" Saudades do menino que fomos um dia "

J.J. Camargo: Saudades do menino que fomos um dia  Ilustração de Edu Oliveira/Agência RBS
Foto: Ilustração de Edu Oliveira / Agência RBS
*J.J. Camargo é cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia e presidente da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM)Sentado na primeira fila de um voo Brasília — Porto Alegre, o moleque com a cara linda e um sorriso espontâneo era a imagem da ansiedade. Tanta, que não lhe permitia ficar recostado na poltrona. Aquele olho inquieto, atento a cada detalhe, era um convite irresistível à conversação, faltava-lhe apenas o interlocutor, viesse de onde viesse.

Depois da decolagem, quando o parceiro de bancada abriu o computador expondo fotos de cirurgias, ele nem pretendeu disfarçar que espiava com o rabo do olho e desencadeou uma sequência de perguntas, que se somavam a outras, antes mesmo que chegassem as primeiras respostas. Havia muito com que interagir e pouco tempo a perder.

A perspicácia reveladora de uma inteligência superior se somava a uma voracidade intelectual deslumbrante num garotinho de 11 anos, a devorar imagens e palavras, com aqueles olhos enormes, ávidos de tudo.

Quinze minutos depois, com a afinidade acelerada pelo encantamento mútuo, vieram as questões pessoais: moras em que cidade, trabalhas onde, estás de férias? Essas coisas...

A mãe morava em Brasília e ele estava aproveitando as duas semanas de férias para ficar com o pai, que se separara da família há dois anos e vivia em Porto Alegre.

Pelo menos a maior parte da ansiedade estava explicada: no fim do caminho haveria um pai à sua espera.


Uma dor fininha varou o esôfago só de pensar como seria doloroso ficar longe de uma cria assim tão maravilhosa e a reação quase instantânea foi imaginar como estaria agora aquele pai, caminhando de um lado para outro, transbordando de angústia nas cercanias do portão de desembarque, à espera que o alto-falante anunciasse que o avião havia pousado.

De repente, uma dúvida, e com ela um sobressalto, e de novo a dorzinha que agora estreitava a garganta: e se o pai não correspondesse àquela ansiedade?

E se ele estivesse lá, de cara amarrada pela vinda de um fedelho que lhe quebraria a rotina a importunar pelas próximas duas semanas?

           Vá lá saber como são todos os pais deste mundo louco!
O certo é que, com esse tipo de dúvida, era impossível apanhar a mala e ir embora para casa como se tudo estivesse resolvido. Fazer um tempo para fiscalizar aquele encontro era obrigatório.

E aí aconteceu. Quando enxergou o pai, o pirralho cegou para o resto, soltou a alça da pequena maleta que arrastava pelo salão e correu, e correu como só se corre para um pai, e saltou nos braços dele, que o apertou muito, e ficaram assim rodando no ar, como se o saguão inteiro fosse só deles. E, de fato, era.

      Agora sim, missão cumprida, um táxi por          favor!

" Ensino em casa questiona socialização na escola "

 


Atualmente no Brasil há registro de cerca de 1.000 famílias que optam por educar seus filhos em casa, prática que não tem regulamentação no País e que não é reconhecida pela Justiça. As razões que levam os pais a não mandarem seus filhos para a escola são analisadas em pesquisa da Faculdade de Educação (FE) da USP e estão relacionadas ao questionamento da qualidade do ensino (tanto público quanto privado) e também a problemas com violência dentro das escolas. De acordo com a pedagoga Luciane Barbosa, autora do estudo, a prática do “homeschooling” mostra a necessidade de discutir o papel da escola como espaço de socialização e formação da cidadania das crianças e jovens.

Os dados sobre ensino em casa são fornecidos pela Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), entidade que presta assessoria jurídica às famílias e defende a aprovação de projetos de lei que regulamentem o tema — desde 1996, sete propostas já passaram pelo Congresso Nacional. “Em julgamento realizado em 2001, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se posicionou contra o ensino em casa, por entender que o artigo 208 da Constituição Federal exige que os pais levem os filhos a frequentarem a escola, além de enfatizarem o papel da instituição escolar na socialização dos alunos”, conta a pedagoga. “Por essa razão, muitas famílias não declaram que ensinam seus filhos em casa por receio de serem levadas à Justiça”.

Luciane entrevistou quatro famílias com histórico de discussões sobre a educação em casa no Poder Judiciário. “A principal motivação que as levou a não matricularem seus filhos na escola diz respeito às críticas que fazem a instituição escolar, inclusive no que diz respeito à qualidade de ensino, seja público ou privado”, ressalta. “Também há discordâncias quanto à formação moral oferecida pelas escolas, devido a ocorrências de episódios de violência e bullying”. A pesquisa é descrita em tese de doutorado orientada pelo professor Romualdo Portela de Oliveira, da FE, e defendida no último dia 3 de junho.

A pedagoga também realizou parte do estudo no Canadá, país onde a prática do “homeschooling” é permitida. “A regulamentação varia conforme as províncias, algumas exigem a prestação dos exames de avaliação oficiais, outras pedem apenas que a diretoria de ensino local seja comunicada”, relata. “Ao entrevistar as famílias canadenses, percebe-se que embora a motivação religiosa esteja muito presente, os pais também optam pelo ensino em casa pela questão de custos (famílias mais numerosas) ou por terem filhos com deficiência, entre outras razões”.

Socialização

Segundo os dirigentes das associações canadenses de ensino domiciliar entrevistados por Luciane, a ausência da escola não leva a uma falta de socialização. “Ao contrário, eles argumentam que a instituição escolar leva a uma socialização restrita, por segregarem as crianças por idade”, diz. “No Canadá, as bibliotecas e ginásios esportivos possuem programas voltados para ‘homeschoolers’, e normalmente os pais que ensinam os filhos em casa são filiados a duas ou mais associações do setor. Também há uma preocupação em desenvolver a participação social dos filhos nas comunidades em que vivem, pois consideram que a escola oferece um conceito de cidadania ligado apenas ao conhecimento de fatos históricos e ao exercício do voto”.

De acordo com a pedagoga, o debate sobre ensino em casa no Brasil surge em um contexto de ampliação do acesso à educação escolar. “No caso do Poder Judiciário, inclusive, era mais comum o julgamento de demandas pelo maior acesso à escola, e não de autorizações de pais para ensinarem os filhos em casa”, afirma. “Com a previsão legal da extensão da escolarização obrigatória, que em 2016 passará a abranger crianças a partir dos quatro anos de idade, surge um questionamento maior sobre a exclusividade da instituição escolar na oferta de ensino”.

O papel da escola como espaço de socialização das crianças e jovens também é colocado em questão pelos defensores do ensino em casa. “Além dos problemas relacionados com a violência nas escolas públicas e diferenças de valores morais, no Brasil há a agravante de que a opção pela escola privada pelos pais representa também uma escolha da classe social em que o filho vai conviver”, diz Luciane. “As famílias entrevistadas possuem um maior poder aquisitivo e, portanto, condições para uma maior atuação na educação dos filhos, por isso cabe indagar se o engajamento em torno do ensino individualizado dos filhos não poderia ser melhor empregado na mobilização por melhorias nas escolas públicas”.

A pedagoga destaca que o principal problema relativo ao ensino domiciliar não é legal ou jurídico, mas de opções de política educacional. “O tema é muito controverso, pois há uma defesa de que a legislação atual, tanto a Constituição de 1988 quanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), daria margem a interpretações que permitiriam a existência do ensino em casa”, afirma. “Ao mesmo tempo, uma possível regulamentação pode, de certa forma, entrar em conflito com todo o processo de profissionalização dos professores, na medida em que se aceitaria que qualquer pai fosse professor de seu filhos, desprezando o histórico debate sobre os saberes e práticas necessárias à atuação docente”.
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Reportagem por Júlio Bernardes, da Agência USP
(Agência USP)
Fonte: http://mercadoetico.terra.com.br/30/08/2013

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

" Suicídio "





BRASÍLIA - Ninguém trata tão mal os políticos quanto os próprios políticos. Nem mesmo o mais ácido crítico teria tanta eficácia quanto Suas Excelências ao corroer a imagem de deputados, de senadores e, pior, do Congresso Nacional.

Há inúmeros adjetivos, além de expressões impublicáveis, para definir a decisão de quarta-feira à noite, absolvendo o presidiário Natan Donadon da cassação de mandato, mas um só basta: é inacreditável.

Os parlamentares que votaram a favor de Donadon, abstiveram-se ou ausentaram-se sem bons motivos deixam uma dúvida. Se eles são colegas de Donadon na corporação Congresso ou deveriam ser na corporação Papuda, onde o parlamentar-presidiário está preso, com uma condenação de mais de 13 anos por formação de quadrilha e desvio de dinheiro público, o popular roubo.

Para tentar contornar o clima de enterro da instituição, o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, saca uma solução heterodoxa e sem respaldo no regimento, declarando o afastamento de Donadon e a convocação de seu suplente, Amir Lando. Está criada a seguinte situação: Donadon não é deputado, mas é; Lando é deputado, mas não é.

E, numa tentativa patética de reduzir as labaredas na opinião pública, o presidente do Senado, Renan Calheiros, desfralda uma "saída célere" anunciando a votação da PEC 18, que determina a perda automática de mandato, sem votação do Legislativo, em caso de condenação por improbidade administrativa e crime contra a administração pública.

Ah! Todos, claro, berram pelos salões, corredores e comissões contra o instituto do voto secreto para a cassação de parlamentares. Quem quiser se igualar a condenados, que vote pelo menos às claras.

Agora, porém, tudo isso é secundário, porque Inês é morta e Donadon está bem vivo. Mas, se alguém acha que isso pode ajudar Genoino, João Paulo Cunha e Costa Neto, está muito enganado. Ou será que não?

" Internet e as crenças "


Este texto é uma tradução livre do trabalho do Gérald Bronner*, publicado em Science et Pseudo-Sciences (http://www.pseudo-sciences.org/) assim como na revista italiana Psicologia contemporanea, número 230, 2012.

Internet, assim como qualquer inovação tecnológica importante, gera medos e esperanças. Com ele, podemos saber em poucos instantes qual a população da Armênia ou ainda o clima que faz na Austrália. Mas, por outro lado, muitos ficam preocupados por encontrar nele muitas ideias falsas que nos afastam de uma representação razoável da realidade.
Consideramos os fatos seguintes:
  • Esta tecnologia é mundial,
  • Alguns pesquisadores calcularam que a informação que transitou no início dos anos 2000 é cinco vezes maior que toda aquela que circulou desde a invenção do Gutenberg,
  • Tendemos a utilizar cada vez mais a internet para procurar informação.
É por tanto legítimo perguntar-se qual são as influências que esta maravilhosa ferramenta pode ter na difusão de ideias duvidosas, particularmente num espaço democrático.

A internet é em primeiro lugar, uma extraordinária revolução do mercado cognitivo, ou seja este espacio fictício onde encontram-se hipóteses, ideias, conhecimentos e crenças, sendo que esses objetos cognitivos podem ser concorrentes entre eles1. Em tal contexto, é de se esperar que a difusão generalizada e de baixo custo da informação seja favorável à difusão do conhecimento e à educação da maioria. Esta esperança de democratização do conhecimento é fundada em parte, mas também é uma representação ingênua da relação ordinária que existe entre o nosso cérebro e a procura de informação.

Amplificação do desvio de confirmação

De fato, na procura de informações, a nossa mente vai geralmente buscar dados que permitem reforçar a representação que já possui das coisas. Nesse punto de vista, internet representa a ferramenta última: por um investimento fraco em tempo e energia mental, ele oferece um volume considerável de informação, qualquer que seja a sua sensibilidade pessoal. A consequência menos visível, embora a mais determinante, é que todas as condições são então reunidas para que o desvio de confirmação (a tendência a privilegiar as informações que confirmam uma ideia ou uma hipótese preexistente) possa se exercer em cheio e chegue a nos ocultar a verdade. No conjunto dos processos que tendem a perenizar as crenças, o desvio de confirmação é, sem dúvida, a tentação inferencial que mais influencia a lógica ordinária. As experimentações do Wason mostram claramente a magnitude da influencia desse desvio sobre o nosso entendimento.

                    A força do desvio de confirmação

Numa das experimentações do Wason, um jogo era proposto ao sujeito voluntário. Aparentemente simples, o jogo necessita 4 cartas.
Cada carta possui um caráter numa face (pode ser E ou K) e um número na outra (pode ser 4 ou 7). A pergunta seguinte é então colocada ao sujeito: “quais cartas devem ser viradas para que a afirmação seguinte seja verificada? Se uma carta possuir uma vogal numa face, então o número na outra é par.”
A solução consiste em virar as cartas I e IV, mas a imensa maioria dos sujeitos da experiência escolhem as cartas I e III. Dessa maneira, eles se concentram nos casos que confirmam a regra, no lugar daqueles que a invalidam. De fato, parece natural considerar que a carta III confirma a regra do enunciado do problema, caso seja encontrada uma vogal na sua outra face. Em realidade, poderia descobrir uma consoante sem que a regra seja quebrada. A única carta que pode estabelecer a validade do enunciado (com exceção da primeira) é a quarta: Se ela tivesse uma vogal na sua outra face, tornar-se-ia obviamente falso o enunciado.
Esse processo mental propõe uma explicação simples, mas poderosa, para entender a longevidade das crenças. De fato, é muitas vezes possível observar fatos que não são incompatíveis com um enunciado duvidoso, mas essa demonstração não têm valor se não consideramos a proporção ou até a simples existência daqueles que o contradizem.

Embora a nossa apetência para a confirmação não expresse uma racionalidade objetiva, por outro lado, ela nos facilita a existência. Assim, o processo de informação é sem dúvida mais eficaz quando o objetivo é de buscar a verdade, porque ele reduz a probabilidade de considerar verdadeiro algo que é falso. Em contrapartida, exige um investimento em tempo que pode, no limite, ser considerado absurdo, já que somente se trata de tomar uma decisão satisfatória. Assim como vários autores o destacaram, as pessoas escolhem em geral uma inferência satisfatória no lugar de uma inferência ótima, usando de “avarícia cognitiva” assim como a nomearam Fiske e Taylor (1984).

Os conhecimentos metódicos produzem quase sempre um efeito cognitivo superior às propostas somente “satisfatórias” que são as crenças, mas eles vêm com um custo de investimento superior.

A partir do momento que uma ideia foi aceita, as pessoas geralmente se mantêm fieis nas sua crença. Esta fidelidade será facilitada pela difusão aumentada e não seletiva da informação que aumenta a probabilidade e a facilidade de encontrar “dados” que confirmam a sua crença. Ao contrário do autor Nicholas Carr (2008), não acredito que a Internet reprograme o nosso cérebro. Em contrapartida, me parece plausível acreditar que uma mente em busca de informação na Internet depende em parte da maneira com a qual o motor de pesquisa a organize. Aquilo que o Web revela não é uma nova maneira de pensar, muito pelo contrário: o desvio de confirmação é um processo muito antigo.

Alguém acredita que os atentados do 11 de setembro foram pilotados pela CIA? Ele vai poder encontrar em poucos segundos, com o uso de qualquer motor de pesquisa na Internet, centenas de páginas que vão reforçar a sua crença. A consulta das fontes de informação que não correspondem às representações do mundo da pessoa será facilmente considerada uma perda de tempo.

Considerando esse mecanismo de busca seletiva da informação, deduz-se que a difusão não seletiva de qualquer tipo de dados aumentará o desvio de confirmação e portanto a perenidade do império das crenças ; aquilo é certamente um paradoxo notável da nossa contemporaneidade informacional. Mas existe algo mais que ainda não foi notado pelos diversos comentaristas da cultura Internet: Trata-se de um mercado cognitivo hipersensível à estruturação da oferta, e consequentemente, às motivações daqueles que propõem conteúdos. É um dos fatores principais da organização da concorrência cognitiva desse mercado.

Os crentes dominam o mercado cognitivo

Qual ponto de vista vai encontrar mais provavelmente um internauta sem preconceito, sobre um tema vetor de crenças, se ele utilizar o motor de pesquisa da Google para adquirir uma opinião? Tentei simular a maneira com a qual um internauta médio pode ter acesso à uma certa oferta cognitiva na Internet para vários assuntos: a astrologia, o monstro do Loch Ness, os círculos de cultura (“crop circles”: aqueles círculos grandes que aparecem misteriosamente nos campos de trigo por exemplo), a psicocinese2… Estas propostas me pareceram interessante a serem testadas na medida que a ortodoxia científica contesta a realidade das crenças por elas inspiradas. Não precisamos aqui nos preocupar com a verdade ou falsidade desses enunciados (quem sabe, tal vez descobriremos um dia um dinossauro com nadadeira num lago da Escócia), mas devemos somente observar a concorrência entre as respostas que podem ser afiliadas à ortodoxia científica e as demais (que chamarei aqui de “crenças” para simplificar). Esses enunciados oferecem por tanto um ponto de observação interessante para avaliar a visibilidade de propostas duvidosas.

Os resultados são óbvios assim como o mostra a tabela seguinte:

Quantidade de sites nos 30 primeiros.
Favoráveis à crença
Desfavoráveis à crença
Neutros ou não pertinentes.
Astrologia2811
Monstro do Loch Ness14412
Crop Circles14214
Psicocinese1767
Concorrência entre crenças e conhecimentos na Internet

Somente considerando sites que defendem argumentos favoráveis ou desfavoráveis, encontra-se em média mais de 80% de sites crentes nas 30 primeiras entradas propostas pelo Google.
Como podemos explicar esta situação? Internet é um mercado cognitivo hipersensível à estruturação da oferta e toda oferta depende da motivação de quem a propõe. Também acontece que os crentes são geralmente mais motivados que os não-crentes para defender o seu ponto de vista e dedicar tempo a isto. A crença é uma parte importante da identidade do crente, e ele será mais motivado para procurar novas informações que vão reforçar o seu ponto de vista. O não-crente se encontrará mais frequentemente numa postura de interferência, recusará a crença, mas sem precisar de outra justificativa do que a fragilidade do enunciado que ele revoga. Este fato é bastante tangível nos fóruns da Internet onde as vezes crentes e não-crentes se opõem. No conjunto dos 23 fóruns que analisei (juntando as 4 crenças estudadas), 211 pontos de vista são expressos, 83 defendem a crença, 45 a combatem e 83 são neutros. O que é marcante nesse fóruns, é que o céticos se satisfazem com mensagens irônicas, zombam a crença no lugar de argumentar contra ela ; enquanto defensores do enunciado apelam a argumentos tal vez desiguais (link vídeo, copiar colar de parágrafos, etc.), mas tentam detalhar o seu ponto de vista. No conjunto dos posts propostos por aqueles que defendem a crença, 36% são sustentados por um documento, um link ou uma argumentação detalhada, contra 10% no caso dos posts de “não-crentes”. Em geral, os homens de ciência não acham interesse nem acadêmico nem pessoal em consagrar tempo para essa concorrência. A consequência paradoxal de essa situação é que os crentes conseguiram estabelecer um oligopólio cognitivo sobre vários tipos de assuntos na Internet e também nas mídias oficiais que se tornaram ultrassensíveis as fontes de informação heterodoxas.

Não penso que Internet torne as pessoas mais estúpidas nem mais inteligentes. Mas os seu funcionamento intrínseco é uma armadilha para algumas disposições das nossas mentes e tende a organizar uma apresentação da informação muitas vezes desfavorável ao conhecimento ortodoxo. Em outras palavras, a livre concorrência das ideia nem sempre favorece o pensamento mais metódico e razoável.

1 Mais precisões sobre esse conceito: Gérald Bronner, L’empire des croyances, Paris, Puf, 2003.
2 Resumi aqui alguns resultados. O estudo completo e o método são detalhados em Bronner (2011).

                                  Bibliografia

Bronner G. (2011), The Future of Collective Beliefs, Oxford, Bardwell Press.
Bronner G. (2003), L’empire des croyances, Paris, Puf
Fiske et Taylor (1984), Social cognition, New York, Random House.
Roussiau N. et Bonardi C. (2001), Les Représentations sociales, Hayen, Mardaga.
Shérif M. et Hovland C.I. (1961), Social judgment, Yales, New Haven, University Press.
Wason P. C. (1977), « Self-contradiction », in Thinking : Reading in cognitive science (Eds. Johnson-Laird et Wason), Cambridge, Cambridge University Press.
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Fonte: http://ceticosblog.wordpress.com/2013/08/17/internet-e-as-crencas/#more-148
* Gérald Bronner est sociologue, professeur à l’Université de Strasbourg. Il est notamment l’auteur de La Pensée extrême. Comment des hommes ordinaires deviennent fanatiques (Denoël, coll. Impacts, 2009) ; Vie et mort des croyances collectives (Hermann, coll. Société et pensées, 2006) ; L’empire des croyances (PUF, coll. Sociologies, 2003). Gérald Bronner est membre du comité de parrainage scientifique de l’AFIS.

" Os Abismos da leveza " < Rodrigo Petronio* >>


Por fim, a superfície das superfícies, a leveza das levezas: o erotismo. Toda a revolução sexual até agora foi apenas um ensaio para as explosões sexuais e desinibidoras das massas silenciosas que estão por vir.
 
Tudo o que é sólido desmancha no ar. Essa máxima, que na verdade é de Marx, deu título à conhecida obra de Marshall Berman que causou frisson nos anos 1990 entre estudiosos da pós-modernidade. Creio que essa frase continue sendo a chave para compreendermos o mundo atual e um futuro que se insinua sibilino. Cada vez mais a liquidez, com e sem trocadilhos, assume o centro de nossa vida. Nessa mesma chave de análise, o sociólogo Zygmunt Bauman se tornou célebre com sua teoria do "amor líquido". Nem sequer nossas relações amorosas se sustentam em bases sólidas.

Peter Sloterdijk, um dos maiores pensadores atuais, dedica o terceiro volume de seu monumental projeto Esferas a uma análise da modernidade a partir da imagem das espumas. Seu signo é bem delimitado: o ar. A arquitetura, o urbanismo, as artes plásticas vivem a constante busca de uma espécie de éter ou de pleroma pós-metafísico. Não se baseia em outra percepção o conceito de hipermodernidade cunhado por Gilles Lipovetsky. Impermanência. Leveza. Transitoriedade. Superfície. A moda assumiu o lugar da modernidade.

Em suas seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino define os valores que determinarão a literatura do futuro. Entre eles, um se destaca: leveza. E são muitos os mestres da leveza. Embora façamos uma associação imediata entre superfície e modernidade, a superficialidade é um patrimônio da arte humana. Um bem de primeira necessidade.

Ao contrário do que se crê, a grande literatura sempre foi o reino da leveza. Nas "Metamorfoses" de Ovídio, segundo Ezra Pound um verdadeiro cinema da Antiguidade, visualizamos a transformação veloz dos deuses em animais, humanos, vegetais e outros seres, imersos em um puro devir. Cândido e Pangloss são estilingados a todas as regiões do planeta entre uma página e outra.

A comédia e a sátira são modalidades de olhar superficial sobre a vida, dos quais Rabelais e Cervantes são mestres. Foi a leveza da prosa realista de Apuleio que criou o romance antigo, nos primeiros séculos da era cristã. As melhores páginas de Ariosto não passam de uma leve e maravilhosa bufonaria. Leveza da "Flora" de Arcimboldo. Leveza dos "clusters" de Paganini. Leveza das folhas de Matisse. Leveza de Calder. Leveza da poesia renascentista. Leveza de Marina Abramovic. Leveza de Pina Bausch. A grande leveza causa vertigem. A superficialidade eficaz põe em risco a estabilidade de nossa vida.

A poesia e a pintura orientais também são verdadeiros testamentos desse mundo flutuante. As pinturas das dinastias Ming e Tang. As gravuras japonesas do século XVII. O homem é um nenúfar entre a Terra e o Céu. E aqui penso também em um haicai magistral de Bashô. O poeta visualiza do alto de uma montanha a praia coberta por uma pátina brilhante prateada. Curioso, desce até o mar. Encontra a areia completamente forrada de peixes pequeninos. São milhares de vidas em agonia. Mas seu movimento conjunto, a distância, cria o efeito sublime de uma enorme e levíssima película que espelha o sol. Transitoriedade. Leveza. Superfície. Impermanência. Não são outros os temas de toda arte e literatura taoistas produzida em 2.500 anos.

Proximidade e distância também guardam uma curiosa relação com profundidade e leveza. O poeta latino Horácio ensina que é preciso considerar as coisas em três perspectivas: de perto e de longe, uma vez e muitas vezes, no claro e no escuro. O jogo e o embaralhamento dessas categorias foram o alimento cotidiano das técnicas de ilusionismo que atravessam a arte do Ocidente.

Ludismo do poema-ovo de Símias de Rodes e da poesia visual da "technopaegnia" antiga. Sofisticada filosofia do espelhamento infinito e crise da representação das meninas de Velázquez. Como Ernst Gombrich demonstrou em seus estudos clássicos sobre arte e ilusão e sobre a arte decorativa, o peso da leveza e a verdade do fingimento são muito mais decisivos para a arte do que supomos.

A antiga técnica da "skenographia", descrita já por Aristóteles na "Poética" e aplicada durante séculos em teatros e igrejas, nada mais é do que uma mise-en-scène que torna a cabeça distante deformada em uma cabeça próxima harmônica. Trata-se de uma pedagogia de uso ilusionista dos espaços e das formas. Transformou-se na cenografia no sentido atual. Migrou para os efeitos especiais do cinema hollywoodiano.

Geralmente pensamos a Renascença como uma conquista da profundidade por meio da perspectiva. Entretanto, o tratadista florentino Leon Battista Alberti, primeiro a teorizar o chamado "ponto cêntrico", no "De Pictura", em 1435, chama a atenção para um fato curioso. Ao compor a ilusão de profundidade, não é apenas a profundidade da pintura que se torna ilusória. É a própria tela que se transforma em uma janela invisível por meio da qual vemos o mundo.

A superfície material da obra simula uma profundidade inexistente. O próprio suporte-tela evanesce. Desaparece. Incipiente em Cimabue, Giotto e Lorenzetti, francamente programático em Dürer, Michelangelo e Leonardo, é com esse ato de leveza que tem início a grande aventura da perspectiva e da pintura figurativa até os dias de hoje.

Se observarmos ao redor, a maior parte de nossa vida está emaranhada nas teias de coisas e seres nascidos dessa conversão à leveza que chamamos de modernidade. Paradoxalmente, a modernidade é um aprofundamento da leveza. Uma transformação da exceção em regra. Da periferia em centro. Uma proliferação infinita do trivial, do supérfluo, do desnecessário. Quem não percebeu a importância incomensurável da superficialidade não compreendeu em profundidade o nosso tempo.

Observem como todo pedante se apoia em algum tipo de profundidade. Notem o peso da sabedoria em suas rugas. Claro. É assim que ele legitima sua insignificância e se separa do vulgo, demarcando sua condição de classe, por mais progressista que ele se julgue. Apenas pessoas superficiais fazem a apologia do profundo. Apenas os ressentidos trabalham para manter uma áurea de beleza no sofrimento. A leveza é o peso e o pesadelo daqueles "espíritos de gravidade" de que fala Nietzsche.

Foi-se o tempo do descomunal, do existencialismo, da angústia em busca de sentido, do "horror vacui" deixado pela morte de Deus. Deus, sentido, mundo, ser, necessidade, substância. Como diz Sloterdijk, as grandes questões da filosofia se revelaram uma longa e entediante conversa fiada para o entretenimento de clérigos e sociólogos.

Nossas dúvidas metafísicas cintilaram em toda a sua vacuidade. Tornaram-se banais. Banal também se tornou o próprio mal, como intuiu profunda e profeticamente Hannah Arendt. Finalmente reconhecemos que nossos abismos interiores nascem de perguntas mal formuladas e de respostas mal respondidas. Mistificações ilusórias de um devaneio narcisista.

Os decálogos morais e as grandes questões das religiões de salvação assumiram a aparência de hesitações desprezíveis daquele nosso "mínimo eu" a que se refere o teórico do contemporâneo Christopher Lasch. Quem garante que essa não seja sua face verdadeira? A processão do Espírito do mundo se realiza nas páginas dos jornais, diria ironicamente Hegel.

Do efeito mágico de uma crônica de jornal a toda a fauna e a flora de nossos objetos cotidianos, o objetivo talvez seja apenas atingir uma forma qualquer de leveza essencial. Dos talheres de Philippe Starck aos enfeites das lojinhas de R$ 1,99, a diferença é de grau, não de natureza. Apenas a impermanência parece dizer algo de fato decisivo sobre a volatilidade de nossas vidas.

As mãos invisíveis do mercado descritas por Adam Smith são uma profecia museológica. Um bidê à Luis XIV. Não são apenas as mãos. O corpo todo do mundo e do real é que se torna invisível, evapora e se volatiliza. Se alguém quiser de fato compreender o tempo em que vivemos, não deve partir de teorias da alienação e da mais-valia ou de clichês sobre a exploração humana. Tampouco conseguirá discernir as formas de escravidão de nosso tempo a partir de análises sociológicas das relações de trabalho.

Quem quiser de fato entender como o capital imaterial se apodera de nossas vidas precisa analisar qual é a relação que estabelecemos cotidianamente com o invisível e a superficialidade. O sociólogo Jeremy Rifkin tem uma polêmica tese positiva sobre o fim do trabalho. Igualmente polêmica, bucólica e convidativa é a tese de Domenico De Masi sobre a sociedade do ócio criativo. É preciso reconhecer o valor ainda que parcial dessas propostas.

Quanto mais a realidade se torna evanescente, mais ela pesa suas asas sujas e translúcidas sobre nossos ombros. Em termos dialéticos, quanto mais intangíveis se tornam os corpos e as mercadorias, maior a violência expropriadora de seus simulacros. Mas no atual estágio do capitalismo e nas "sociedades de paredes finas" em que vivemos, querer reter nas mãos a realidade inaparente e afirmar uma essência imutável é criar para si uma variante sublime da loucura ou duplicar o próprio princípio da alienação. Ou seja: morrer em nome de uma profundidade que inexiste e viver em uma leveza fracassada.

Como dizia o poeta Paul Valéry, não há nada mais profundo do que a pele. Se Deus existe, ele tem o peso das sonatas para piano de Mozart. Tem a leveza de cada linha de Voltaire. A leveza de Kazuo Ohno. A profundidade é a última mitologia romântica que restou em meio aos destroços do mundo burguês. Apenas a afirmação da superficialidade nos salvará do abismo imaterial que nos espreita a cada esquina.

Por fim, a superfície das superfícies, a leveza das levezas: o erotismo. Toda a revolução sexual até agora foi apenas um ensaio para as explosões sexuais e desinibidoras das massas silenciosas que estão por vir. Querer detê-las, criticá-las e domesticá-las por meio de expedientes dialéticos ou morais será a missão antecipadamente frustrada dos ateus de batina do futuro.
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* Rodrigo Petronio é escritor e filósofo. Autor, editor e organizador de dezenas de obras. Autor dos livros "Pedra de Luz" (poemas, 2005), "Venho de um País Selvagem" (poemas, 2009), entre outrosFonte: Valor Econômico on line, 30/08/2013

" A Profecia do silêncio "

Enzo Bianchi*

Precisamos do silêncio também do ponto de vista espiritual. Não se trata simplesmente de abster-se de falar ou da ausência de ruídos, mas sim do silêncio interior, aquela dimensão que nos restitui a nós mesmos, nos coloca no plano do ser,
diante do essencial.

Se na nossa sociedade "o homem tornou-se um apêndice do ruído" (Max Picard), faz cada vez mais urgente a exigência de que cada um reencontre a sua própria humanidade através da redescoberta do silêncio e da aprendizagem da antiquíssima arte de "ouvir o silêncio". Empreendimento certamente nada simples, se ainda Heráclito definia os seus próprios semelhantes como "incapazes de ouvir e de falar": desde então, talvez, temos a impressão de ter dado passos à frente na capacidade de falar, mas certamente quanto à escuta parecemos ter voltado séculos. Temos a necessidade de uma pedagogia da escuta que só pode ter início a partir do silêncio. Sim, "ouvir o silêncio" pode parecer um oxímoro, mas é a chave que abre o mundo da escuta autêntica e da compreensão do que se sente.

A tradição espiritual, não só cristã, sempre reconheceu a essencialidade do silêncio para uma vida interior autêntica. "A oração – disse Savonarola , que entendia bem de discursos apaixonados – tem como pai o silêncio e como mãe a solidão". Só o silêncio, de fato, torna possível a escuta, isto é, a acolhida em si não apenas da palavra pronunciada, mas também da presença daquele que fala. O silêncio é linguagem de amor, de profundidade, de presença ao outro. Além disso, na experiência amorosa, o silêncio é muitas vezes linguagem mais eloquente, intensa e comunicativa do que as palavras.

Infelizmente, hoje, o silêncio é raro, talvez seja a realidade mais ausente nos nossos dias: somos bombardeados por mensagens sonoras e visuais, os ruídos nos roubam da nossa interioridade, e as próprias palavras são empobrecidas pelo fato de serem gritadas, reduzidas a slogans ou invectivas.

Ora, "quando diminui o prestígio da linguagem, aumenta o do silêncio" (Susan Sontag). Devemos confessar: precisamos do silêncio! Ele nos é necessário de um ponto de vista puramente antropológico, porque o homem, que é um ser de relação, comunica de modo equilibrado e equilibrado apenas graças à harmônica relação entre palavra e silêncio.

Mas precisamos do silêncio também do ponto de vista espiritual. Para a fé judaica e cristã, o silêncio é uma dimensão teológica: no monte Horeb, o profeta Elias percebeu que estava na presença de Deus não no estrondo do vento, trovões e terremoto, mas somente quando ele ouviu "a voz de um silêncio sutil" (1Rs 19, 12). Inácio de Antioquia diria que Cristo é "a Palavra que procede do silêncio".

Não se trata simplesmente de abster-se de falar ou da ausência de ruídos, mas sim do silêncio interior, aquela dimensão que nos restitui a nós mesmos, nos coloca no plano do ser, diante do essencial. "No silêncio, é inerente um maravilhoso poder de observação, de esclarecimento, de concentração sobre as coisas essenciais" (Dietrich Bonhoeffer).

O silêncio é guardião da interioridade, já que nos conduz de uma dimensão primária e "negativa" de sobriedade, disciplina no falar ou mesmo de abstenção de palavras, a um nível mais profundo, de intensa vida espiritual: isto é, de silenciar os pensamentos, as imagens, as rebeliões, os julgamentos, as murmurações que nascem no coração. É o difícil silêncio interior, aquele que encontra o seu próprio âmbito vital no coração, lugar da luta espiritual. Mas justamente esse silêncio profundo gera a atenção, a acolhida, a empatia com relação ao outro.

O silêncio escava no nosso profundo um espaço para ali fazer habitar a alteridade, para fazer ressoar a palavra e, ao mesmo tempo, nos dispõe à escuta inteligente, ao falar comedido, ao discernimento daquilo que arde no coração do outro e que está escondido no silêncio do qual nascem as suas palavras. O silêncio, então, esse silêncio, suscita em nós a caridade, o amor pelo irmão.

"O silencioso torna-se fonte de graça para quem ouve", afirmara São Basílio. Para o cristão, a referência à escuta obediente da Palavra de Deus, à acolhida do Verbo feito carne é evidente e extremamente eloquente.

O corpo habitado pelo silêncio torna-se
revelação da pessoa inteira.

Não por acaso é esse silêncio que chega a nós a partir de uma longa história espiritual: é o silêncio buscado e praticado pelos hesicastos para obter a unificação do coração, o silêncio da tradição monástica voltado à acolhida em si da palavra de Deus, o silêncio da oração de adoração da presença de Deus. Mas também é o silêncio caro aos místicos de todas as tradições religiosas e, antes ainda, é o silêncio do qual a linguagem poética está embebida, o silêncio que constitui a própria matéria da música, o silêncio essencial a todo ato comunicativo.

O silêncio, evento de profundidade e de unificação, torna o corpo eloquente, levando-nos a habitar o nosso corpo, a alimentar a nossa vida interior, guiando-nos para aquele habitare secum tão precioso para a tradição monástica como para a filosófica. O corpo habitado pelo silêncio torna-se revelação da pessoa inteira.

Tentemos, então, encontrar no ritmo da nossa vida um tempo para ouvir o silêncio: conseguiremos captar os esforços realizados para criá-lo e cuidá-lo, discernir os sons imperceptíveis da presença de outras criaturas ao nosso lado, compreender o não dito que habita a grande quantidade de palavras, ter inteligência do que acontece – ou seja, literalmente, a "ler dentro" dos eventos – e, finalmente, também ouvir melhor a nós mesmos e aos outros quando eles falam ao nosso coração e à nossa mente, e não só aos nossos ouvidos.
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* A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal Avvenire, dos bispos italianos, 29-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line