sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

 

23 de fevereiro de 2017 
NÍLSON SOUZA

                                   Obra inacabada

Uma vez fui até a Ilha do Presídio para fazer uma reportagem com o advogado Índio Vargas, que passou uma temporada naquele local quando foi preso por lutar contra a ditadura. Ele conta isso com detalhes no seu livro Guerra É Guerra – Dizia o Torturador. Perguntei-lhe o que se passa na cabeça de um prisioneiro durante o seu período de privação de liberdade.

– Só uma coisa, o tempo todo – me respondeu. E completou: – Fugir!

Era bem difícil sair de lá, mas um tal Pitinelli conseguiu a proeza, utilizando duas panelas para boiar até as margens do Guaíba. O plano de fuga do Presídio Central, abortado ontem pela Polícia Civil, era bem mais elaborado. Os policiais encontraram uma verdadeira obra de engenharia em andamento, com operários trabalhando, equipamentos sofisticados, iluminação, sistema de ventilação, escoras, tudo planejado para a maior evasão de detentos da história do Estado. Boa parte da população carcerária poderia ter escapado.

Dessa nós é que escapamos. Palmas para a polícia.

Como não poderia deixar de ser, tão logo o episódio foi noticiado, começaram a surgir brincadeiras e memes. Uma das mais divertidas que recolhi ontem numa roda de amigos foi esta:

– Mais uma obra inacabada em Porto Alegre!

Latinices

Na célebre carta do então vice-presidente decorativo Michel Temer à então presidente periclitante Dilma Rousseff, o homem das mesóclises soltou o latim: “Verba volant, scripta manent” (As palavras voam, os escritos permanecem). A partir daquele momento, as palavras realmente voaram para todos os lados – duras, acusatórias, ofensivas às vezes, num português que envergonharia a língua-mãe dos romanos, se pudesse ser traduzido: coxinhus, petralhum et caterva...

No final do debate, porém, o inglês se sobrepôs ao latim: impeachment. E cada lado continuou traduzindo a palavra de acordo com sua ótica ideológica. Mas aquilo que foi escrito pelos constituintes de 1988 acabou prevalecendo e permanecendo: saiu a presidente, assumiu o vice. Com as promessas de sempre e a garantia de que a Operação Lava-Jato, por ter-se tornado uma referência para o país, não sofreria qualquer interferência e teria proteção contra todas as tentativas de enfraquecê-la. 

Pois agora que integrantes do próprio governo e seus aliados fazem de tudo para boicotar a investigação, seria bom que o presidente prestasse atenção no latinório utilizado por seu amigo Carlos Velloso na nota em que recusou o Ministério da Justiça: “Pacta sunt servanda” (O contrato é a lei entre os contratantes).

Ou, no jargão do fio de bigode que os políticos modernos mandaram para as calendas gregas, promessa é dívida. Era, uma vez.


24 de fevereiro de 2017
POLÍTICA

           Serraglio promete manter “distância” da Lava-Jato


NOVO MINISTRO DA JUSTIÇA, que é deputado do PMDB, foi anunciado pelo Palácio do Planalto
Um dia após a nomeação do ex-ministro da Justiça Alexandre de Moraes para o Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Michel Temer definiu seu substituto. Assumirá o cargo o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR). O nome ganhou força por ter apoio de parte da bancada do PMDB da Câmara e do PSDB. Relator da CPI dos Correios, que deu origem ao processo do mensalão, Serraglio é próximo ao ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

Primeira opção de Temer para suceder Moraes e dar um caráter técnico à nomeação, o ministro aposentado do STF Carlos Velloso recusou o convite na semana passada. A desistência recolocou Serraglio no páreo. A escolha tenta sustar as críticas recebidas pelo governo da bancada do PMDB, que cobra mais espaço na Esplanada. 

A pressão foi decisiva para sacramentar a nomeação. Além da chancela dos colegas de partido, pesou a favor de Serraglio, nascido em Erechim mas com carreira desenvolvida no Paraná, sua formação jurídica. Professor universitário, é mestre em Direito pela PUC-SP e tem especialização em processo civil pela Universidade Paranaense.

Com experiência limitada no Executivo, o peemedebista assume o cargo com o desafio de controlar a crise da segurança pública, que teve chacinas em presídios e protestos de policiais militares pelo país. Serraglio terá de tirar do papel o controverso Plano Nacional de Segurança, lançado por Moraes. Outro desafio trata de conter a insatisfação da Polícia Federal, que aponta movimentos para barrar a Operação Lava-Jato.

PROXIMIDADE COM CUNHA É RESSALTADA POR OPOSITORES

Na Câmara, o novo ministro não estava entre os nomes de maior influência política dentro do PMDB. Seu momento de maior destaque ocorreu entre 2005 e 2006, quando foi relator da CPI dos Correios.

– Ele é uma pessoa muito educada, às vezes não se tem ideia do que é capaz. Mas foi decisivo para a CPI dos Correios, que teve o resultado que teve – afirmou o ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, que fez campanha por Serraglio para a pasta.

Terra avalia que o novo colega terá pulso para dar seguimento à Lava-Jato, apesar de a cúpula do PMDB estar implicada nas investigações – ontem, dois doleiros ligados ao partido foram alvo de operação da Polícia Federal (leia na página 15). Serraglio disse à Folhapress ter acertado com Temer um compromisso com relação à Lava-Jato:

– A ordem é manter distância porque a gente sabe que qualquer coisa que faça, você se contamina, então é para deixar para lá.

Um dos investigados na operação é Cunha, antigo aliado de Serraglio. Em 2016, o deputado teve o apoio do então presidente da Câmara para presidir a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), por onde passaria o processo que levou à cassação do parlamentar fluminense – o mais longo caso da história, que se arrastou por 335 dias. Acusado por parlamentares da oposição de dever favores a Cunha, Serraglio reagiu:

– Essa história de que devo favor a Cunha é folclore.

A proximidade com o ex-presidente da Câmara é lembrada por desafetos do novo ministro. Colega de partido e eleito pelo mesmo Estado, o senador Roberto Requião (PMDB-PR) criticou a opção do governo. Para ele, o escolhido por Temer fará um trabalho no mesmo nível do que é realizado por Ricardo Barros (PP-PR) à frente da Saúde.

– É o fim do mundo, aliado de Eduardo Cunha no Ministério da Justiça. Está à altura do conjunto da obra do governo Temer – provocou Requião.

Em novembro de 2016, já com Temer no Planalto e Cunha cassado e preso pela Lava- Jato, Serraglio foi um dos deputados que votou a favor do projeto que trata do abuso de autoridade juízes e promotores, na sessão que desfigurou a proposta das medidas de combate à corrupção encabeçadas pelo Ministério Público Federal.

Ainda na Câmara, o peemedebista relatou a PEC 215, que dá ao Congresso a palavra final sobre as demarcações de terras indígenas, atualmente definidas pelo governo federal, sendo que os processos passam justamente pelo Ministério da Justiça.

A TRAJETÓRIA

-Osmar Serraglio nasceu em Erechim, em 23 de maio de 1948. Em Tapera, estudou no seminário Sagrado Coração de Jesus. Aos 15 anos, com os pais e quatro irmãos e uma irmã, mudou-se para o Paraná.
-Advogado, filiou-se ao MDB em 1978 e seguiu no partido após a mudança do nome para PMDB. Foi assessor jurídico de prefeituras no noroeste do Paraná, até ser eleito vice-prefeito de Umuarama em 1992. Ficou no cargo até 1996. Dois anos depois, foi eleito para o primeiro dos cinco mandatos consecutivos de deputado federal.
-Entre 2005 e 2006, foi relator da CPI dos Correios, criada a partir de denúncias de corrupção na estatal, mas que acabou investigando a existência do pagamento de um mensalão para os parlamentares, em troca da aprovação de medidas de interesse do governo.
-No ano passado, comandou a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Aliado do então presidente da Casa, Eduardo Cunha, Serraglio teve como missão pautar recursos que poderiam anular o processo aberto contra amigo no Conselho de Ética. Quando Cunha foi preso, em outubro do ano passado, reagiu dizendo:
– É a queda da República!
Serraglio também afirmou que a cassação seria “punição muito severa” para Cunha e dizia duvidar que o correligionário perderia o mandato por conta dos apoios que tinha. Disse, ainda, que o ex-presidente da Casa teria conquistado a simpatia de parlamentares por conta da celeridade com que fez andar o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
-Serraglio votou a favor da punição de juízes e de procuradores por abuso de autoridade, dentro do pacote anticorrupção aprovado pela Câmara. Logo depois, divulgou uma nota afirmando que a responsabilização de juízes e promotores nada tem a ver com a Lava-Jato e que o Brasil está sendo passado a limpo. No texto, entretanto, faz a ressalva de que “nem todos os juízes e procuradores são Sergio Moro ou Deltan Dallagnol”.
-No início do mês, foi candidato avulso à primeira vice-presidência da Câmara, mas acabou derrotado.

Amigo de Temer corrobora trecho de delação da Odebrecht e acusa Padilha

José Yunes, que deixou Governo, diz ter sido feito de "mula" por ministro da Casa Civil

Segundo executivo, Yunes foi destinatário de dinheiro vivo para campanha do PMDB


José Yunes e Michel Temer.

O sigilo sobre as dezenas de colaborações com a Justiça de executivos da Odebrecht segue vigente, mas o pouco que já se sabe delas seguem provocando estragos. Nesta quinta, José Yunes, o amigo de longa data de Michel Temer e ex-assessor presidencial, corroborou, em termos, um dos trechos da delação do executivo da empreiteira, Cláudio Melo Filho, vazada em dezembro à imprensa. De quebra, ele apontou a mira para um homem-forte do Governo, o ministro Eliseu Padilha (Casa Civil).
Segundo a Folha de S. PauloYunes disse que Padilha o fez de "mula" ao pedir que ele recebesse um "pacote" em seu escritório em 2014. Ainda segundo Yunes, citado pela Folha, o emissário do pacote foi Lucio Funaro, um operador do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-SP). No relato do delator da Odebrecht, o pacote levava dinheiro vivo da empreiteira destinado a campanhas do PMDB, fruto de um acerto feito em jantar com o próprio Temer

O ex-assessor de Temer, que deixou o cargo em dezembro quando a história veio à tona, afirma que jamais soube o que levava o pacote. Nesta semana, Yunes resolveu, de acordo com o jornal, se adiantar e prestar depoimento espontâneo na Procuradoria-Geral da República, a respeito do episódio


Lava Jato mira o “padrinho” da propina do PMDB

Jorge Luz é apontado por delatores como sendo um dos mais antigos lobistas da Petrobras


São Paulo 
O paraense Jorge Luz, 73, alvo da 38ª fase da Operação Lava Jato nesta quinta-feira, tem um currículo invejável no campo dos operadores de propina envolvidos no escândalo de corrupção da Petrobras. Delatores se referem a ele com uma espécie de “decano” e "padrinho" dos lobistas e responsáveis por fazer a intermediação dos pagamentos ilegais envolvendo a estatal, empresas e políticos. Foi contra Luz que a Polícia Federal cumpriu nesta manhã 16 mandados de busca e apreensão em endereços ligados a ele e seu filho Bruno Luz. O juiz federal Sérgio Moro autorizou pedidos de prisão preventiva para os dois, que estão nos Estados Unidos. Caso não se apresentem à Justiça, a PF informou que acionará a Interpol para localizá-los. De acordo com a força-tarefa da Lava Jato, pai e filho usaram contas de empresas offshores no exterior para pagar propina para agentes políticos do PMDB, principalmente no Senado, que rondam os 40 milhões de dólares

O ex-diretor da área Internacional da Petrobras e colaborador da Justiça, Nestor Cerveró, afirmou em seus depoimentos que Luz teria repassado cerca de 6 milhões de dólares ao ex-presidente do Senado Renan Calheiros (PMDB-AL) – algo que o parlamentar nega. O dinheiro seria usado na campanha eleitoral do peemedebista. Em nota, Renan afirma que "a chance de se encontrar qualquer irregularidade em suas contas pessoais ou eleitorais é igual a zero" e que "todas as suas relações com empresas, diretores ou outros investigados não ultrapassaram os limites institucionais". Renan já foi denunciado pela Lava Jatoem outro inquérito e é réu pelo crime de peculato no Supremo Tribunal Federal. No total, a procuradoria acredita que diversos senadores da legenda e diretores da estatal tenham embolsado mais de 40 milhões de dólares entregues pelos Luz. “Há estimativas de que essas pessoas movimentaram em torno de 40 milhões em pagamentos indevidos", afirmou procurador Diogo Castor, sem mencionar o nome de nenhum político. No despacho de Moro autorizando as ações da PF desta quinta, no entanto, o nome de Renan aparece seis vezes em diferentes contextos, mas sempre relacionado a Jorge Luz. Além de Renan, o nome de Jader Barbalho (PMDB-PA) também aparece em delações como sendo o destinatário de propinas repassadas por Luz.
É a segunda operação seguida ligada à Lava Jato que atinge, ainda que indiretamente, nomes de caciques peemedebistas. Na semana passada foi a vez da Leviatã, que investiga pagamentos de propinas para a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, e da usina nuclear de Angra 3, no Rio de Janeiro, chegar ao clã do senador Edison Lobão (PMDB-MA).
“Pai e filho atuavam de forma conjunta e faziam o meio campo entre os que queriam pagar propina e os que queriam receber os valores ilícitos”, disse o procurador Castor sobre o esquema. Além de auxiliar o pai Jorge Luz, o MPF afirma que Bruno é sócio do filho do lobista João Henriques (preso na Lava Jato em setembro de 2015) em uma empresa suspeita de auxiliar na movimentação dos valores ilegais. As autoridades já rastrearam negociatas feitas pelos Luz usando contas na Suíça e nas Bahamas. Eles são investigados por corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas envolvendo contratos de compra dos navios-sonda Petrobras 10.000 e Vitória 10.000; na operação do navio sonda Vitoria 10.000 e na venda, pela estatal, da Transener para a empresa Eletroengenharia.

O pioneiro dos operadores de propina

A relação de Jorge com a Petrobras é antiga e reforça a tese defendida por especialistas e procuradores de que o esquema de corrupção da estatal transcende Governos e décadas. Ele atua como lobista nas diretorias de Abastecimento e Internacional da petroleira ao menos desde 1986, durante o Governo do então presidente José Sarney (PMDB-MA) e continuou na ativa durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Lula (PT) e Dilma (PT). Sua importância no esquema da Lava Jato foi confirmada pelo depoimento de ao menos cinco colaboradores da Justiça. Para o lobista Fernando Soares, vulgo Fernando Baiano, ligado ao ex-deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), Luz foi uma espécie de padrinho e pioneiro no modus operandi da propina, abrindo as portas para o mundo da corrupção em Brasília.
De um encontro entre Luz e Baiano entre 2007 e 2008 foi costurado acordo para buscar apoio de políticos do PMDB para conseguir manter os então diretores da área Internacional, Nestor Cerveró, e de Abastecimento, Paulo Roberto Costa, em seus cargos. Até então as propinas pagas pela manutenção dos dois na estatal eram direcionadas ao PP. Em seu depoimento, Costa afirmou que “o Jorge é um lobista dentro da Petrobras desde sempre”. Cerveró e Costa assinaram acordos de delação com o MPF e ambos citam o papel de Luz para “azeitar” as relações com Brasília.
Já o empresário Milton Schahin, do grupo Schahin, outro envolvido no esquema da Petrobras, disse ao juiz Moro em abril do ano passado: "Conheço ele [Luz] há mais de 20 anos. Eu sei que ele não brinca quando fala. Resolvi não correr o risco". O risco, no caso, era perder contratos com a estatal caso não fosse feito o pagamento de propinas exigido por Luz. Schahin assinou um acordo de delação premiada e se comprometeu a entregar documentos que comprovam os pagamentos feitos em contas de Luz. Sua colaboração ainda não foi homologada pela Justiça.
Quando seu nome começou a ser citado pelos delatores, Jorge Luz tentou conseguir um acordo de colaboração com as autoridades, mas as negociações emperraram. Agora, com um mandado de prisão preventiva aberto e na lista da Interpol, existe a expectativa de que Luz seja obrigado a colocar todas as cartas na mesa para conseguir um eventual acordo de delação premiada

                    O LUGAR E O TEMPO

                                                                   Paulo Tunhas*

 Resultado de imagem para lugar e tempo

No fundo, o corpo da humanidade é, como a Lydia de Groucho Marx, uma imensa enciclopédia de tatuagens, cada uma delas exprimindo um conjunto de significações imaginárias, particulares e irredutíveis.
Há curiosidades e curiosidades. E é preciso, com alguma regularidade, passar das curiosidades rotineiras em relação àquilo que nos rodeia e nos envolve, como as coisas políticas, no sentido trivial da palavra, a outro tipo de curiosidades que nos ajudam a ver o mundo com maior distância. Não convém ser esquisito em relação a estas, embora haja indisputavelmente questões que são mais importantes do que outras. Por exemplo: como puderam os seres humanos criar sociedades tão diversas entre si, tão diferentes nas suas crenças e na sua organização, nos seus valores e no seu entendimento da vida? Foi uma questão que ocupou permanentemente o filósofo francês, de origem grega, Cornelius Castoriadis, e é uma interrogação à qual faz bem voltar. Ela permite-nos fugir à esfera mais restrita das nossas preocupações políticas habituais, que são ditadas pelos nossos juízos sobre o que consideramos mais perigoso e sobre como evitar tais perigos. De um certo modo, é verdade, as duas questões encontram-se ligadas entre si, mas a interrogação sobre a diversidade das sociedades humanas não nos conduz directamente a nenhum tipo de resposta particular no que respeita aos nossos medos e desejos políticos presentes, a não ser talvez num sentido muito derivado e vago.

Meio por acaso, apanhei-me a ler nestes últimos tempos alguma literatura sobre os astecas e sobre a sociedade vitoriana. E nestas coisas surge fatalmente, como pano de fundo da leitura, a pergunta persistente: “como era ser asteca?” e “como era ser um inglês da segunda metade do século XIX?”. Dito de outra maneira: que tipo antropológico era cada um dos dois? Para o leigo, pelo menos para mim, é o maior interesse da história, aquilo que nos promete um maior contacto com o desconhecido, e com um desconhecido que se sabe de saber certo ter existido realmente, mais longínquo ou mais próximo.

Como mandam os livros, o exercício da simpatia é de regra. Por isso, em relação aos astecas não basta o maravilhamento com a sua arte, nomeadamente a prodigiosa escultura, em que a morte e a violência vivem tornadas objecto de beleza. É preciso ir mais além, ir directamente ao horror, e, por exemplo, procurar viver de dentro o significado atribuído aos sacrifícios humanos. Como se sabe, eles eram praticados em dimensões extraordinárias, muito para além, parece, das conhecidas pelos Maias e pelos Incas. Tratava-se de, simbolicamente, alimentar os deuses, particularmente o Sol, que sem tais sacrifícios desapareceria. Mas o que é que isso quer dizer? Que sentido, real, concreto, vivido, possuia o ritual? E porque é que se acreditava que os sacrifícios das crianças eram particularmente favoráveis a Tlaloc, o deus da chuva? Há, é claro, uma razão vagamente compreensível: as crianças, além de berrarem mais, choravam mais, tornando assim supostamente a terra mais fértil. Mas não são tanto as razões, que podemos vagamente identificar ou não, que são misteriosas. É o gesto de nelas acreditar, a própria crença em si, vivida subjectivamente, que nos atrai para o radicalmente desconhecido. E o que possamos buscar como analogia contemporânea dessas crenças não nos faz avançar muito. Há uma irredutibilidade última daquela criação humana, daquele tipo antropológico, que quase tocamos mentalmente ao ler o que sobre ela se escreveu. Mas a irredutibilidade é, por definição, inapropriável. Não há contacto mental que nos permita verdadeiramente saber o que era ser asteca – como, embora num plano obviamente mais radical, não podemos nunca saber o que é ser um morcego.

Com os vitorianos a dificuldade é evidentemente menor. A proximidade no tempo, a possibilidade de identificação com uma tradição que em parte partilhamos, facilitam certamente a dimensão compreensiva da simpatia. Para mais, na sua complexidade e nas suas contradições, a sociedade vitoriana representa muito do melhor daquilo que, de acordo com os nossos actuais padrões, a humanidade até hoje nos ofereceu. O imperialismo, com os seus inevitáveis horrores (embora não o possamos reduzir a estes), não pode nunca fazer esquecer a progressiva e muito real institucionalização da preocupação com a sorte dos mais desfavorecidos e o desenvolvimento de uma ética, de uma criação moral particular, da qual somos sob muitos aspectos herdeiros. Além disso, a literatura permite-nos percepcionar as crenças, a forma como elas eram subjectivamente vividas, de um modo que nos é obviamente impossível no que respeita aos astecas. Resta que, tal como estes, os vitorianos representam um tipo antropológico particular, uma criação humana singular que nos é, em última análise, inapropriável. Sabemos deles muito mais, compreendemo-los muito melhor, somos deles muito mais próximos, herdámos a sua ciência e a sua literatura, muitos dos seus princípios políticos, podemo-nos em parte descobrir a nós próprios neles – mas subsiste também face a eles uma distância que introduz não apenas o sentimento de uma diferença, como, mais do que isso, de uma alteridade em relação a nós. As suas crenças, por próximas que fossem, em muitos aspectos, da nossas, não são as nossas crenças, e a questão da sua vivência subjectiva é para nós objecto de uma curiosidade que contém já em si a impossibilidade de ser inteiramente satisfeita.

Li no outro dia que Cesare Lombroso, o célebre criminologista italiano, que defendia, como se sabe, inspirando-se parcialmente em Darwin, a ideia segundo a qual os criminosos representam uma regressão hereditariamente motivada a fases primitivas da evolução humana, se interessou algum tempo pelas tatuagens. A tatuagem era para ele um traço característico do homem primitivo, subsistindo ainda hoje nos selvagens. E era também algo de regularmente observável nos criminosos. Com método e rigor, observou os lúgubres estados de espírito que as tatuagens exprimiam: “nascido sob uma má estrela”, “pouca sorte”, “vingança”, e por aí adiante. Não pretendo insistir no facto de que hoje em dia Lumbroso teria, quanto mais não fosse por razões quantitativas, a vida mais difícil do que no fim do século XIX. Apenas assinalar que a sua probidade científica o levou a constatar a existência de excepções. Encontrou, suponho que num braço, uma mensagem inequivocamente positiva: “Longa vida à França e às batatas fritas francesas!”.

No fundo, o corpo da humanidade é, como a Lydia de Groucho Marx, uma imensa enciclopédia de tatuagens, cada uma delas exprimindo um conjunto de significações imaginárias, para voltar a Castoriadis, particulares e irredutíveis, com tempos e lugares precisos. Com sorte, percebemos bem a tatuagem em que vivemos e as que nos são mais próximas (às quais chamamos a nossa tradição). As outras, podemos apenas adivinhá-las. E mesmo as mais próximas revelam sentidos que não são já nunca inteiramente os nossos.
-------
*  Nasci a 18 de Maio de 1960. Licenciei-me em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e doutorei-me, também em Filosofia, pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Sou professor no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador no Instituto de Filosofia da mesma Universidade.
Fonte:  http://observador.pt/opiniao/o-lugar-e-o-tempo/ 23/02/017

                                         bioeconomia…

Antonio Silvio Hendges*
 Resultado de imagem para biologia sintética
 
 Converter a biologia em objeto passível de intervenções da engenharia é atualmente uma prioridade nas agendas de investigação científica. A bioengenharia tem a intenção de fabricar e/ou obter novas possibilidades biológicas, para além das combinações e interações gênicas naturais e abrir espaços para a expansão da bioeconomia. Portanto, quem interpreta a bioeconomia referida em algumas ocasiões na imprensa, empresas multinacionais ou governos baseia-se na organização ecológica natural ou em sua retomada está totalmente enganado: o modelo será baseado em outras relações ecológicas, sociais, econômicas e políticas, inclusive com o monopólio de muitos serviços e produtos indispensáveis pelas empresas de bioengenharia e outras relacionadas protegidas através de patentes, acordos e lobbies. A combinação da bioengenharia, com a robótica e as nanotecnologias amplia ainda mais este admirável mundo novo.

A biologia sintética propõe a recombinação dos genes individuais para a construção de novas características, incorporando aspectos do design, em redes de regulação gênicas inteligíveis, previsíveis e manipuláveis dos organismos, redesenhando suas funções, ampliando ou estabelecendo seletivamente as interações com o meio ambiente. Amplia as possibilidades da engenharia genética, pois esta recombina os códigos genéticos já existentes, enquanto a biologia sintética propõe a criação de novos códigos, inclusive interativos e controláveis por sistemas computacionais.

Entre as perspectivas e aplicações da biologia sintética, destacam-se alguns objetivos que já possuem estudos avançados e inclusive algumas experiências que já estão acontecendo em diversas áreas. Importante destacar que a biologia sintética faz parte das pesquisas científicas e que suas aplicações e controle dependem de decisões éticas, científicas, econômicas e socioambientais que precisam considerar as oportunidades, mas também os riscos e princípios de precaução associados ao seu desenvolvimento e reprodução.

Biotecnologias – Projeção e construção de sistemas biológicos que processam informações, manipulam produtos químicos, fabricam materiais, produzam alimentos e/ou energia, aplicam-se na saúde ou nos aspectos ambientais escolhidos, padronização de partes biológicas, recombinação de componentes biomoleculares, novas funções tecnológicas em células vivas.

Reescrita – Os reescritores são biólogos sintéticos que acreditam que devido à complexidade dos sistemas biológicos naturais, é mais simples montar um sistema biológico de interesse específico, com produtos de manipulação e compreensão mais fáceis.

Vida artificial – Criação de moléculas ou mesmo de espécies inéditas capazes de realizarem novas funções, na indústria e na medicina, por exemplo. Os genomas sintéticos introduzidos em células geneticamente esvaziadas permitem a reprodução da célula artificial. Esta experiência foi realizada pelo J. Craig Venter Institute e descrita na revista Science de maio de 2010.

Transformação celular – São construídos componentes sintéticos de DNA ou mesmo genomas completos e uma vez obtido o código genético projetado, este é inserido em células vivas que se espera, manifestem as funcionalidades pretendidas ou os fenótipos programados ao crescerem e se reproduzirem. A transformação celular permite criar circuitos biológicos manipuláveis para produzirem as saídas desejadas.

Informações – É possível armazenar enormes quantidades de informações codificadas em uma cadeia de DNA sintético. Em 2012 o cientista George M. Church codificou um dos seus livros com 5,3 Mb de dados em DNA sintético.

Evolução direcionada – Introdução de combinações de genes previamente programados, controlando a evolução de organismos de acordo com interesses pré-estabelecidos, como por exemplo, a produção de fermentos utilizados em algumas indústrias e medicamentos e/ou tratamentos com base em modificações evolutivas em organismos vivos. É mais ampla que a engenharia metabólica tradicional por utilizar combinações genéticas não existentes. Também há pesquisas que permitam acelerar, retardar ou parar a evolução de células ou organismos.

Projeção de proteínas – Existem métodos para a engenharia de proteínas naturais por evolução dirigida, por exemplo, mas no caso da biologia sintética trata-se de projetar novas estruturas, inclusive aminoácidos inexistentes na natureza para melhoria ou novas funcionalidades das proteínas conhecidas ou projetadas para interesses específicos.

Biossensores – Biossensores são organismos, geralmente bactérias sensíveis aos fenômenos e alterações ambientais, por exemplo, a presença de metais pesados, óleos e toxinas químicas no ambiente. Experiências já realizadas no Oak Ridge National Laboratory codificam enzimas responsáveis pela bioluminescência e a associam a um promotor respondente para expressar estes genes, por exemplo, chips de computadores com revestimento bacteriano bioluminescentes e fotossensíveis utilizados para detectar poluentes petrolíferos. Quando o revestimento bacteriano detecta os poluentes, emitem luminescência.

Exploração espacial – A biologia sintética desperta grande expectativa nas pesquisas de exploração, ocupação e migração espacial, sendo possível a produção de recursos aos astronautas a partir de um conjunto restrito de compostos enviados da terra e a implantação de processos de produção com base em recursos locais, viabilizando o desenvolvimento de postos habitados com dependência mínima ou nenhuma da terra de origem.

Enzimas industriais – As enzimas, geralmente proteínas, catalisam reações biológicas que necessitam de muita energia e tempo para acontecerem espontaneamente. A biologia sintética pretende sintetizar enzimas de alto desempenho e aumentar os níveis de produção metabólicas celulares importantes industrialmente na produção desde lácteos sem lactose a detergentes orgânicos, por exemplo. As intervenções na engenharia metabólica pela biologia sintética têm amplas aplicações na indústria farmacêutica e bioquímica.

Materiais biológicos artificiais – A integração da biologia sintética com as ciências dos materiais possibilitará a produção de materiais com propriedades codificáveis geneticamente. A utilização na indústria robótica permite construir, configurar e programar em série estes dispositivos para executarem tarefas atualmente impossíveis com as tecnologias utilizadas. Muitas outras aplicações são possíveis como adesão a substratos específicos, imobilização de proteínas e a elaboração de modelos de nano partículas biológicas.

Como se pode perceber pelas amplas aplicações possíveis para a biologia sintética, não é possível ignorar as pesquisas que são desenvolvidas, mas também não se permite perder o foco em relação às questões éticas, sociais, ambientais e de biossegurança que estão adjacentes às suas possibilidades.

Como serão reguladas as empresas de síntese de DNA, enzimas, proteínas e outros produtos associados com a biologia sintética? Como serão controladas as pesquisas e quais regras de biosseguranças serão aplicadas? Quem e como terá acesso aos produtos desenvolvidos? As empresas poderão patentear organismos e utilizar estas patentes como uma reserva de mercado?

As pesquisas serão segredos comerciais? Ou serão públicas e controladas por conselhos científicos ou outros mecanismos? E as interações da biologia sintética com as nanotecnologias, robótica e ciências dos materiais? Quais os limites éticos da aplicação da biologia sintética? Poderão ser desenvolvidas armas, por exemplo? E a bioengenharia de embriões humanos, será permitida? O que acontecerá com os resíduos biológicos sintéticos das pesquisas bem ou mal sucedidas? Quem serão os beneficiários dos ativos da nova bioeconomia com base na biologia sintética? E os responsáveis pelos passivos ambientais, sociais e econômicos?