sábado, 24 de novembro de 2018

O francês Blaise Pascal, nascido na cidade de Clermond-Ferrand, em 1623, viveu muito ou viveu pouco? Ele morreu aos 39 anos de idade. 

sábado, 24 de novembro de 2018


            Pascal, arranja o que fazer

                             Juremir Machado da Silva*como criar blog


A expectativa média de vida masculina na sua época era de 26 anos. Como se vê, cada tempo com o seu metro. Pascal tinha uma convicção mais forte do que todas: nós, humanos, não suportamos a solidão, o repouso e o tédio. Em termos claros e válidos até hoje, ficamos loucos de pedra quando não encontramos algo para fazer.

 Precisamos estar sempre ocupados. Sofremos demais com o barulho dos nossos pensamentos. Pascal ocupava-se com filosofia, lógica, ciência, física, religião e matemática. Inventou uma máquina de calcular.

 Aos 16 anos, escreveu um tratado que chamou a atenção de René Descartes. Dizia-se que nada equivalente fora escrito desde Arquimedes.
 A hipótese de Pascal para explicar esse nosso horror à imobilidade é discutível e discutida: teríamos medo de ficar a sós conosco mesmos. Medo de quê? De pensar em nossa finitude, na morte, na miserabilidade humana, em nossa situação de desamparo. 

O leitor pode exclamar: “Eu adoro ficar sem fazer coisa alguma. Fico de papo para o ar horas e horas numa boa”. Sem ouvir música? Sem celular? Sem boas lembranças para distrair? Honestidade, leitor, honestidade. Blaise Pascal legou à posteridade os seus “Pensamentos”. Ele era bom de frases e refletiu sobre muitas coisas, entre as quais, de modo especial, a felicidade. Dado que não conseguimos resolver certas questões como a da morte, decidimos, segundo ele, não pensar nisso. Uma estratégia. Funciona? Nem sempre. O que queremos? “O ser humano quer ser feliz, e somente quer ser feliz, e não pode deixar de querer sê-lo. Como fará então?” Ótima pergunta. Sempre que se fala assim é por não se ter a resposta. Ou não? Pessimista, vítima de alucinações desde o momento em que sofreu um terrível acidente de rua – Pascal via um abismo abrindo-se para engoli-lo –, viveu recluso.

 Pode haver pavor maior? Pode. Mas esse já era horrível. O acidente que mudou a vida de Pascal aconteceu em 1654. Era dia de festa. Ele estava numa carruagem puxada por seis cavalos. Na ponte de Neuilly, dois cavalos assustaram-se e partiram em disparada. Como não havia parapeito, caíram na água. O sistema de atrelamento se rompeu e a carroça ficou balançando à beira do abismo. O pobre Blaise carregaria o fardo diário dessa lembrança convertida em pesadelo. A experiência da carruagem teve para ele também o valor de uma iluminação. Ele pensou que morreria. Mudou de vida. Nunca se livraria da angústia que o acossara por minutos eternos. A palavra felicidade surge, porém, com frequência em seus textos. É preciso que a religião, “para tornar o homem feliz”, mostre-lhe que há um Deus, “que se é obrigado a amá-lo, que a nossa verdadeira felicidade é estar nele”. Qual é o problema? As trevas que nos impedem de enxergar a luz. Cuidado com a vaidade – Não fosse assim, seria fácil. Não é. Como diz a canção, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. O caminho não costuma ser reto. As dores quase sempre são maiores do que as delícias ou acabam por nos vencer. Ser um gênio infelizmente não garante a felicidade. Nem a estupidez. As misérias humanas, visíveis por toda parte, devem levar a Deus, que pode nos redimir de tantas iniquidades. Não temos como escapar dos entretenimentos que nos distraem de nossos medos, mas não podemos ser felizes realmente só por meio deles. Que fazer? É preciso dar o salto para Deus, fazer a grande aposta, arriscar tudo. Pascal queria ajudar a encontrar remédios para os nossos males, que nunca são poucos. Pascal era hologramático. Segundo ele, como gosta de lembrar o velho sábio francês Edgar Morin, a parte está no todo, que está na parte.

     Estamos em nossas células, que estão em nós. 

Vivemos em nosso espírito, que vive em nós e nos faz viver. Pascal apostava que nos resta “um poderoso instinto de felicidade”, parte da nossa “primeira natureza”. As nossas misérias – ambições, desejos desmurados, ânsia do poder, invejas, o que quisermos – funcionam como uma “segunda natureza”. Ser feliz é tudo o que ser quer. Pascal sabia disso. Ele queria, no entanto, separar a felicidade ilusória da verdadeira felicidade. Os seus contemporâneos não estavam preparados para isso. E nós? Estamos prontos para tanto? O grande inimigo da felicidade é a vaidade. Nada de novo no front. Pascal capturou o que sentimos. Como é possível que não queiramos ser enganados se aceitamos enganar? Como reprovar moralmente quem nos despreza se nos comportamos de forma desprezível? Como esperar a paz do permanente se se vivemos na ilusão do efêmero, na autoindulgência, na mentira, na hipocrisia, na enganação, na encenação, no jogo de aparências e na adulação? Pascal afirmava: “A coisa mais importante na vida é a escolha de uma profissão”. Como fazer a escolha certa tão cedo? Ele garantia para quem quisesse ouvir: “A infelicidade dos homens provém de uma só coisa, que é não saberem ficar em repouso num quarto”. Nada mais difícil.


 --------- * Escritor. Sociólogo. Jornalista. Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/11/11364/pascal-arranja-o-que-fazer/ 24/11/2018como criar blog

sábado, 3 de novembro de 2018

No fundo do poço 

- J.R. GUZZO


No fundo do poço - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

Deve ser extraordinariamente pesado para Lula convencer o público de que é um "preso político" após a sentença que recebeu do eleitorado brasileiro

Quatro anos atrás, apenas quatro anos atrás, o ex-­presidente Lula estava no topo do mundo — ou, pelo menos, acreditava que não havia ninguém acima dele no resto do planeta. Tinha sido presidente da República, eleito e reeleito, por oito anos seguidos. Nesse período, por uma razão ou outra, convenceu os grandes colossos do pensamento político brasileiro e internacional de que seu governo havia sido um fabuloso sucesso, e de que ele, pessoalmente, era um novo Stupor Mundi, o “Espanto do Mundo” neste despertar do século XXI. “He’s the man”,disse dele Barack Obama — ele é “o cara”. Outros altos lordes da cena mundial, do secretário-geral da ONU ao Santo Padre o Papa, lhe prestavam homenagem. Economistas, sociólogos e filósofos acreditavam que Lula conseguira “avanços sociais” inéditos para o Brasil — uma combinação rara de distribuição de renda, eliminação da pobreza e progresso econômico. Tinha eleito sua sucessora Dilma Rousseff, uma nulidade da qual ninguém jamais ouvira falar — e, mais ainda, conseguira o quase milagre da sua reeleição, em 2014. Tinha sobrevivido a pelo menos um escândalo gigante, o da corrupção em massa de parlamentares do mensalão. Tinha descoberto o pré-sal e ia fazer o Brasil entrar na Opep. Tinha construído um estádio bilionário para o Sport Club Corinthians Paulista.

Neste domingo, ao se encerrar a apuração do segundo turno da eleição presidencial de 2018, Lula estava na lona — ou, se quiserem, continuava na sua viagem rumo ao fundo do poço, que ele iniciou dois ou três anos atrás e imaginou que fosse capaz de interromper com uma vitória eleitoral milagrosa. Seu candidato, Fernando Haddad, foi derrotado por um adversário que até seis meses atrás não existia na política brasileira. Confirmou-se, no segundo turno, o que foi anunciado no primeiro: Lula, hoje, é uma garantia de derrota para tudo o que aparece ligado ao seu nome. Quer ganhar uma eleição? Mostre ao eleitorado, como fez Jair Bolsonaro, que você é 100% contra Lula. Seu partido virou picadinho. Sua reputação continua em ruínas, e só afundou mais com a ação arruaceira do PT para tumultuar o pleito. Pior que tudo, Lula sai das eleições no mesmo lugar onde estava quando entrou nelas: na cadeia, cumprindo há sete meses uma pena de doze anos por corrupção e lavagem de dinheiro. Após mais de trinta anos no centro das decisões, pode estar a caminho de ser eliminado como uma força ativa na vida política do Brasil.

O que aconteceu com Lula e com o PT em tão pouco tempo? É extraordinariamente pesado para Lula, depois de usar um maciço sistema de forças, pressões e dinheiro para convencer o público de que é um “preso político” condenado sem “provas”, receber a sentença que ele recebeu do eleitorado brasileiro: não, não queremos mais que você seja presidente; queremos, isto sim, que você continue na cadeia. Está na cara que em algum momento, entre as alturas de 2014 e o desastre da eleição de 2018, alguma coisa deu horrivelmente errado. O que foi? Na verdade, muitas coisas deram errado — ou, mais exatamente, quase nada mais deu certo desde o momento em que, já no segundo governo Dilma, a Justiça brasileira começou a investigar de verdade a corrupção no governo. A Operação Lava-Jato foi um terremoto em câmera lenta. Continua até hoje a mandar gente para a penitenciária, mas no início praticamente ninguém acreditava que aquilo fosse dar em alguma coisa. Nunca tinha dado. Por que iria dar agora?

Pior que estar errado é continuar errando, e nisso Lula tem se mostrado insuperável ao longo de seus anos de desmanche. Não é tão complicado assim entender o porquê. Um dos problemas do ex-presidente é essa coisa de dizerem o tempo todo que ele é um gênio da política, um cérebro com capacidade sobrenatural para sair ganhando de qualquer desastre em que se mete. Falam assim os devotos, os admiradores liberais, a mídia, o mundo e os adversários. A complicação é que o ex-presidente acredita nisso tudo. Parece não compreender que, quando os entendidos em política anunciam que Lula é capaz de voar, quem tem de acreditar é a plateia, não ele. Mas Lula acredita — e, como não voa, só pode mesmo acabar despencando no chão. Talvez ninguém tenha resumido a situação tão bem quanto o senador eleito Cid Gomes, do Ceará, ao ser confrontado com um pelotão de fiéis que gritavam “Lula, Lula”, logo após o naufrágio no primeiro turno. “O Lula está na cadeia, babaca”. Acontece que a Lava-Jato e o trabalho do juiz Sergio Moro, mais o Ministério Público, a Polícia Federal e o TRF-4 de Porto Alegre, acabaram, sim, dando em muita coisa — na verdade, jamais uma ação do Judiciário brasileiro deu em tanta coisa. Eventualmente, com o tempo, mostraram que o rei estava nu, ao provar que nos governos de Lula e de Dilma a prática da corrupção superou a roubalheira de qualquer outra época, talvez em qualquer lugar do mundo. Lula esteve entre os que não acreditaram que a terra começava a tremer. Estava errado.

Sua principal conquista, hoje, se resume a sair um dia da prisão — pouca coisa para quem já esteve na primeiríssima classe da vida. O fato é que o ex-presidente não soube reagir quando começou a sofrer derrotas, e a melhor demonstração disso é que não quis, em nenhum momento, admitir que tinha sido derrotado em alguma coisa. Em vez disso, e de pensar com seriedade nas causas de seus problemas, resolveu embarcar num cruzeiro de ilusões. Problema? Que problema? No primeiro tombo complicado, no episódio do Mensalão, começou dizendo que tinha sido “apunhalado pelas costas” e que o povo merecia “desculpas” — mas, um minuto depois de ver que ia escapar do desastre a preço de custo, voltou atrás e passou a jurar que não havia acontecido nada de errado, imaginem só que absurdo. Daí em diante, nunca mais acertou o passo. Como se livrou do primeiro desastre, achou que iria se livrar de todos — só que, na vida real, não estava se livrando de nada. Estava apenas aumentando o tamanho do buraco em que tinha se enfiado.

A sequência é bem conhecida. Lula errou horrendamente quando escolheu Dilma para guardar sua cadeira de presidente por quatro anos. Errou de novo quando ela não quis sair e inventou de ser reeleita; em vez de exigir que o “poste” fosse embora para que ele próprio se lançasse candidato à Presidência, como planejava, fez de conta que estava tudo bem. Seguiu-se, daí, a maior calamidade que Lula e o PT poderiam esperar — Dilma foi um desastre ainda pior depois da reeleição, e tanto ele como o partido ficaram olhando, sem fazer nada, enquanto a grande “gerente” mandava tudo para o espaço. Quando o povo foi para a rua, em multidões cada vez maiores, Lula e o PT decidiram que não estava acontecendo nada; era só um bando de “coxinhas” fazendo barulho no domingão. Quando perceberam, enfim, que aquilo tudo estava simplesmente levando ao impeachment de Dilma, perderam de novo. Lula tentou ser ministro — foi barrado pela Justiça, que a essa altura já estava roncando à sua volta. Mudou-se para Brasília, imaginando que tinha poder para virar a votação no Congresso a favor de Dilma. A sucessora acabou deposta por quase três quartos dos votos.

Não passou pela cabeça de Lula nem pela dos dirigentes do PT, a essa altura, que a situação toda estava indo para o saco. Ao contrário: acharam que a grande ideia era “ir para cima” e balançar ainda mais o barco. Inventou-se a lenda do golpe — não colou. Partiram para uma briga com a opinião pública, do tipo “ou eu ou ele”, entre Lula e Sergio Moro, o “juizinho do interior” — deu Moro, disparado. Em vez de montar uma defesa jurídica profissional, técnica e voltada para a eficácia, Lula decidiu transformar seu processo numa “causa política”, sonhando que “a população” fosse bloquear o trabalho normal da Justiça e salvar o seu couro — apesar de todas as provas de que “a população”, já fazia muito tempo, estava pouco ligando para o que lhe acontecia. Ficou apostando em safar-se com trapaças jurídicas miúdas, ou com traficâncias no submundo dos tribunais superiores, ou com acertos secretos na “segunda turma” do STF — capaz, no imaginário petista, de salvar da cadeia não só Lula, mas quem Lula mandasse ser salvo. Não deu em nada. Com ele já trancado em sua cela em Curitiba, montou-se a fantasia de um acampamento gigante em torno da prisão, que ali ficaria “até Lula ser solto”. No seu momento de maior esplendor, o cerco reuniu 500 pessoas. Chegou a ficar com setenta. Há muito tempo não existe mais. A “convulsão social” com “derramamento de sangue” prometida pelo alto-comando do PT jamais apareceu. “A ONU” mandou soltar Lula, anunciou-se através do mundo. Ninguém ligou — possivelmente nem a ONU.

A última tentativa de virar o jogo, com a campanha eleitoral, teve o seu desfecho neste domingo, com o resultado que se sabe. Como em quase tudo o que tem acontecido com Lula e o PT no passado recente, foi uma sucessão de erros, cegueira e ilusões. Começou com a alucinação de que Lula, preso e condenado em duas instâncias a doze anos de xadrez, seria o candidato do partido. Daí em diante só piorou. Em nenhum momento o ex-presidente tentou entender por que, afinal de contas, tanta gente estava querendo votar em Jair Bolsonaro. Nem ele nem o seu sistema de apoio se interessaram em pensar um pouco nas propostas do adversário — e muito menos em propor alguma alternativa a elas. Ficaram repetindo, do começo ao fim, a mesma lista de acusações a Bolsonaro, apesar do evidente pouco-caso da maioria do eleitorado em relação a todas elas — homofobia, racismo, fascismo, elogio à tortura, desprezo à mulher, defesa do porte de armas, intenção de criar uma ditadura no Brasil. Deram a impressão de não ter percebido que nada disso tirou um voto sequer do concorrente. Nem mesmo notaram a realidade básica de que não podiam tratar como “inimigo”, ou “ameaça”, um candidato que não era nem inimigo nem ameaça para os 50 milhões de brasileiros que votaram nele no primeiro turno. Onde está o “gênio político” que não prestou atenção a nenhuma dessas coisas?

Lula e o PT tiveram uma ilusão fatal, também, com a sua celebradíssima capacidade de “transferir votos” e de transformar “postes” em governantes vitoriosos. Há transferência a favor, claro, mas hoje em dia o problema é que Lula, ao mesmo tempo, transfere voto contra para os seus candidatos; ganha um, perde dois. Já transferiu com sucesso votos para Dilma e para o próprio Fernando Haddad, presenteado com a prefeitura de São Paulo. Mas aí era outro Lula. Já há dois anos, na última vez que se pôde medir seu condão de transferir votos, não transferiu nada — não funcionou, aliás, com o mesmo Haddad, que perdeu a prefeitura no primeiro turno para um adversário que nunca tinha disputado uma eleição na vida. O PT, nas eleições municipais de 2016, foi moído nas urnas. Lula, a essa altura, era um Lula a caminho da cadeia; já não conseguia eleger postes, como não elegeu agora. A ficha demorou a cair. A votação do primeiro turno avisou: “Fora, Lula”. E qual a primeira coisa que Haddad fez logo depois de ter ouvido esse recado? Foi visitar Lula na cadeia.

Houve uma tentativa aparentemente desesperada, aí, para virar a casaca — mas já era tarde demais. Os cérebros estratégicos do partido acharam melhor, no segundo turno, que Haddad se transformasse num personagem de fic­ção, inexistente até a véspera. Queriam que ele aparecesse, de repente, como um sujeito que não tinha nada a ver com Lula. Tiraram o nome do ex-presidente da campanha, e sumiram as máscaras com o rosto de Lula sobrepondo-se ao de Haddad. O vermelho foi suprimido da paleta de cores do PT — tudo ficou subitamente verde-amarelo. O programa do candidato foi mudado: apagaram alguns dos pontos mais claramente suicidas e instruíram o até então Lula-Haddad-Lula-Haddad-Lula-Haddad a fazer uma cara de Fernando Henrique. Perda de tempo. Galinha que anda com pato, como ensina o dito popular, acaba morrendo afogada. Haddad andou tanto com Lula que acabou entrando na água com ele. Entrou vestido de verde-amarelo, mas a roupa a essa altura não adiantava mais nada. Também não adiantou fingir que era Haddad.

Em seu desabamento progressivo, Lula, com a ajuda empolgada do PT, quis representar o papel de mártir. Péssima ideia. Brasileiro, no fundo, não gosta de gente que está na cadeia. Não acha que as penitenciárias estejam cheias de injustiçados. Acha o contrário — que há muita gente culpada do lado de fora. Para a maioria do eleitorado, Lula não é vítima, nem preso político. É só um político ladrão que foi condenado — como deveriam ser nove entre dez dos que continuam soltos. Não é um julgamento sereno, mas é assim que a massa pensa e continuará pensando, e vai apenas perder seu tempo quem quiser convencê-la do contrário. Revela muito da decomposição política de Lula e do PT o fato de terem achado que uma cela de cadeia é um lugar capaz de despertar admiração no povo ou de servir como centro de comando de uma campanha eleitoral.

A vida é cheia de surpresas, como acaba de mostrar a eleição de Bolsonaro, e coisas que nunca aconteceram antes sempre podem acontecer um dia. Lula e seu complexo de forças, mais a quase totalidade dos que se dedicam a explicar o que ocorre na política brasileira, precisariam recomeçar do zero para ter alguma chance de entender, algum dia, o que está havendo com o Brasil de 2018 — e o que pode vir pela frente. Há várias maneiras de fazer isso, mas uma delas, certamente, é admitir que existe neste país uma imensa quantidade de gente inconformada com quase tudo o que o poder público lhe serviu nos últimos trinta anos, de José Sarney a Michel Temer. Os políticos perderam o controle das ruas — e para a esquerda, que sempre imaginou que a rua estaria do seu lado, a perda é uma calamidade ainda maior. O fato real é que Lula e seu partido não têm mais nada a ver com a massa, como não tinham nas manifestações de 2015 e 2016. Quem leva gente à praça pública, hoje, é o presidente eleito Jair Bolsonaro. Enquanto essa realidade não for encarada com firmeza, ele continuará sem competição verdadeira.

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

O ego de Lula


- EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 25 Outubro 2018

Lula não consegue soar democrático nem quando isso poderia favorecer o campo petista. Sua carta é uma reafirmação das mistificações que fazem de Lula um dos demagogos mais perniciosos da história nacional

Por mais que o PT tenha se esforçado para fingir que seu candidato à Presidência, Fernando Haddad, não é um mero preposto de Lula da Silva, há algo que nenhum truque de marketing será capaz de mudar: o PT sempre foi e continuará a ser infinitas vezes menor do que o ego de Lula. Na reta final da campanha eleitoral, justamente no momento em que Haddad mais se empenha para buscar apoio fora da seita lulopetista, o demiurgo de Garanhuns, decerto inquieto na cela em que cumpre pena por corrupção, resolveu divulgar uma carta para exigir - a palavra adequada é essa - que todos reconheçam a inigualável grandeza de seu legado como governante e que votem no seu fantoche se estiverem realmente interessados em salvar a democracia brasileira, supostamente ameaçada pelos “fascistas”.

O tom da mensagem é o exato oposto do que seria recomendável para quem se diz interessado em angariar a simpatia daqueles que, embora não tenham a menor inclinação para votar em Jair Bolsonaro (PSL) para presidente, tampouco gostariam de ver o PT voltar ao poder. Para esses eleitores, somente se o PT reconhecesse, de maneira honesta e sem adversativas, seu papel preponderante na ruína econômica, política e moral do Brasil nos últimos anos, cujos frutos mais amargos foram o empobrecimento do País e a desmoralização da política, talvez houvesse alguma chance de mudar de ideia. Mas isso é impossível, em se tratando de Lula da Silva, que se considera o mais importante brasileiro vivo e o maior líder que este país jamais terá.

Na carta em que diz que “é o momento de unir o povo, os democratas, todos e todas em torno da candidatura de Fernando Haddad, para retomar o projeto de desenvolvimento com inclusão social e defender a opção do Brasil pela democracia”, Lula não reserva uma única vírgula ao desastre econômico do governo de Dilma Rousseff, outra de suas inesquecíveis criações. Ao contrário: afirma que Dilma sofreu impeachment em razão de uma imensa conspiração de “interesses poderosos dentro e fora do País”, incluindo “todas as forças da imprensa” e “setores parciais do Judiciário”, para “associar o PT à corrupção” - omitindo escandalosamente o fato de que Dilma foi cassada exclusivamente por ter fraudado as contas públicas com truques contábeis e pedaladas. O petrolão, embora tenha sido motivo mais que suficiente para que o PT fosse defenestrado do poder para nunca mais voltar, não foi levado em conta no processo.

Como jamais teve compromisso real com a democracia - que pressupõe respeito a quem tem opinião divergente, para que seja possível o consenso - e também nunca reconheceu a legitimidade de nenhum governo que não fosse o seu ou de seus títeres, Lula não consegue soar democrático nem quando isso poderia favorecer o campo petista. A carta, ao contrário, é uma reafirmação de todas as mistificações que fazem de Lula um dos demagogos mais perniciosos da história nacional.

Lá estão as patranhas que tanto colaboraram para fazer do antipetismo um movimento tão sólido e vibrante, conforme atestam as pesquisas de opinião. Lula, sempre no plural majestático, diz que “fizemos o melhor para o Brasil e para o nosso povo” e por isso “tentam destruir nossa imagem, reescrever a história, apagar a memória do povo”. O sujeito desse complô, claro, é indeterminado, mas unido no que Lula chamou de “ódio contra o PT”. Tudo porque, diz Lula, “tiramos 36 milhões de pessoas da miséria”, porque “promovemos o maior ciclo de desenvolvimento econômico com inclusão social”, porque “fizemos uma revolução silenciosa no Nordeste” e porque “abrimos as portas do Palácio do Planalto aos pobres, aos negros, às mulheres, ao povo LGBTI, aos sem-teto, aos sem-terra, aos hansenianos, aos quilombolas, a todos e todas que foram discriminados e esquecidos ao longo de séculos”. Nada mais, nada menos.

Esse panegírico só serve para mostrar que Lula é mesmo incorrigível - e que seu arrogante apelo para “votar em Fernando Haddad” e assim “defender o estado democrático de direito” contra a “ameaça fascista que paira sobre o Brasil” não vale o papel em que está escrito.

O Brasil velho está unido 


- FREITAS SOLICH




27/10

A grande mídia que vive de verba do governo está unida aos artistas que vivem de fazer filme ruim financiado por estatais através da lei Rouanet.

Estes estão unidos aos movimentos sociais que ganham boas verbas governamentais para manter sua estrutura de arregimentar pessoas.

Esses últimos estão unidos com categorias de funcionários que trabalham em estatais, com benefícios especiais.

Juntam se a esses, os políticos com algum risco de serem alcançados pela Lavajato.

Tem também os bandidos ja condenados em primeira instância que esperam reverter o entendimento de prisão em segunda instância.

Tem os jornalistas, que faturam com blogs e emissoras de TV financiados com empresas públicas , ou indiretamente através de grandes empresas prestadoras de serviço para estatais e governo.

Tem também uma multidão de cientistas que viajam pelo mundo apresentando trabalhos científicos inúteis, financiados por agências científicas públicas , que se preocupam mais em números de publicações , do que com resultados efetivos das suas pesquisas para a sociedade.

Ia me esquecendo de professores de universidades públicas que arrumam qualquer projeto científico, como pretexto, para reduzir a carga horária em sala de aula.

Tem aquele empresário que consegue financiamentos baratos com bancos de fomento publico.

Um grupo forte que também faz parte dessa grande união, são aposentados, que ganham mega aposentadorias ou que esperam ganhar uma num futuro próximo.

Faltou alguém ?

Falta você , que é empregado na iniciativa privada, que tem que entregar parte do seu dinheiro para o FGTS, impostos e um INSS que sustenta os super bem aposentados, mas que só vai lhe pagar no máximo o teto de 5.645,61 Reais.

Falta você que pegou suas economias, e investe num pequeno negócio, e trabalha duro pelo seu sonho, até ter o pesadelo , de cruzar com o governo e ele fazer o possível para lhe multar, ou cobrar alguma taxa de licença, meramente burocrática.

Falta você que abre seu pequeno comércio todo dia , e fica rezando que algum cliente apareça, para no final do mês, conseguir honrar seus pagamentos com fornecedores e funcionários.

Falta você que não tem emprego, e quando alguém pensa em lhe contratar, desiste porque tem medo que a complexa legislação torne a contratação muito perigosa para o seu pequeno negocio.
 Freitas Solich

Uma virada à direita

 - FERNANDO GABEIRA



O GLOBO - 29/10

Ganhar a eleição é difícil; derrotar forças poderosas, mais ainda. Mas dificuldades começam mesmo quando se chega ao governo


A roda rodou. Já vi muitos presidentes, subindo e descendo a rampa. Um deles descendo ao fundo da terra, Tancredo. Collor chegando e saindo de nariz erguido. Lula com tantas promessas.

Itamar, encontrei antes da posse, no Hotel Sheraton. Ele ainda não era o presidente, e eu tentava convencê-lo de que seria. Conheci Itamar desde a Rua Halfeld, a mesma onde Bolsonaro tomou a facada. Era um homem decente, tomava religiosamente uma sopinha ao entardecer. Ousou assinar o Plano Real.

Agora, sobe Jair Bolsonaro. Não foi uma rodada simples, dessas em que PT e PSDB se revezam. Foi mais ampla, como foi a de 64, só que agora sem Guerra Fria, num contexto democrático.

Senti a ascensão de Jair Bolsonaro. Impossível ignorá-la correndo o Brasil, observando as redes sociais. Quando levou a facada em Juiz de Fora, pensei: facada e tiro, quando não matam, elegem.

Se nossa cultura produziu essa certeza, isso quer dizer que a condenação da violência política tende a ser consensual. O presidente eleito deveria encarnar e expressar essa condenação. Não é um conselho, apenas uma leitura do Brasil. Os últimos dias de campanha foram ameaçadores. Prisão, desterro, banir da face da terra. Alta tensão. As universidades podem ser invadidas por ideias, não pela polícia.

O novo governo tem uma agenda brava, e só me resta usar esses meses de transição para estudar melhor e criticá-la com fundamento.

Outro campo de estudo se abre. A frase de Mano Brown — é preciso encontrar o povo — foi endereçada ao PT. Mas não vale também para o sistema partidário, a academia, a mídia, os especialistas? Como reconciliá-los com o homem comum?

Minha atitude com Bolsonaro será a que sempre adotei nos anos de convivência: respeito ao argumentar nos pontos divergentes e estímulo aos seus movimentos positivos. Alguns leitores condenam essa visão, sob o argumento de que normaliza a barbárie.

Mas se era assim com o deputado, por que não seria com o presidente, cujas ações mexem com nosso destino e com a imagem externa do Brasil?

Na minha visão de mundo, é impensável ofender os eleitores que escolheram outro caminho. O pressuposto é apostar na boa-fé da maioria do povo brasileiro.

Farei uma oposição sem truques ou medo, das que não visam ao poder. Apenas um desejo de ver o país retomando democraticamente os trilhos, um pouco também por filhos e netos. A sensação de continuidade ao lado da poesia são os territórios em que desafiamos a morte.

Ganhar a eleição é difícil; derrotar forças poderosas, mais ainda. No entanto, as dificuldades começam mesmo quando se chega ao governo. As qualidades para ganhar a eleição são diferentes das que impulsionam o governo. Para vencer, é preciso falar a linguagem do povo.

O grande talento nesse campo nem sempre nos socorre, quando a necessidade impõe grande esforço intelectual para a tomada de decisões. Da mesma forma, o tom agressivo de campanha é o inverso da generosidade que se espera de um eleito.

Bolsonaro não é um raio em céu azul. O panorama político no Brasil mudou. Pensadores de direita surgiram no cenário. Jovens liberais, propagandistas religiosos ocuparam as redes.

As manifestações de 2013 colocaram na rua multidões com uma aspiração difusa de melhores serviços. As de 2015 afunilaram na denúncia da corrupção, impulsionaram a queda de Dilma.

Uma esquerda, sem élan para se reinventar ou base teórica para vislumbrar o horizonte, tornou-se uma presa fácil no debate de ideias.

Foi uma campanha da era digital. Hoje, todos falam, compartilham. Baixo nível? Talvez. Mais democrático? Sem dúvida. Foi também facada, fake news, acusações, brigas entre famílias, amigos, ansiedade, tentativas de suicídio — um psicodrama nacional.

Fiz tudo para manter a cabeça fria. É natural levar caneladas dos dois lados. Caneladas e balas perdidas são parte do jogo.

Outro dia, alguém escreveu sobre mim: se ficar como ele, peço aos amigos que me ajudem numa eutanásia. Não tenho por hábito contestar essas coisas da rede. Nesse caso, a resposta seria simples: obrigado por morrer em meu lugar. É uma gentileza nesses tempos sombrios.

É preciso viver um pouco mais para ver um país mais tranquilo, fraternal. Não sou ingênuo a ponto de imaginar esquerda e direita de mãos dadas. Não se trata de lirismo. As emoções da campanha ofuscaram um pouco a gravidade de nossos problemas.

Agora, voltamos à vida real.

               A nova direita

                            - DENIS LERRER ROSENFIELD




ESTADÃO - 29/10

A ideologia de esquerda está perdendo espaço para a emergência de novas forças políticas


O quadro eleitoral mudou a face do País. Novos parlamentares, novos governantes. Os padrões que vinham orientando a conduta dos políticos sofreu uma brusca transformação, desde a importância da televisão, que perdeu a sua força em detrimento das redes sociais, até a afirmação do antipetismo como ideia transformadora. A ideologia de esquerda perde a sua aderência, abrindo espaço para a emergência de novas forças.

Até estas últimas eleições tínhamos um critério definido, articulado em torno da oposição PT-PSDB. O esquema vigente estruturava-se a partir de uma alternativa entre uma esquerda social-democrata e uma que detestava essa denominação, fazendo o jogo da democracia, apesar de não reconhecer o seu valor universal.

Os valores da esquerda funcionavam como uma espécie de terreno comum, balizando os termos da disputa. Segundo as necessidades eleitorais, os tucanos faziam uma leve inflexão à direita, para capturar os seus votos, embora não se reconhecessem nesse movimento. Os petistas, por sua vez, saíam de sua posição de esquerda ou de extrema esquerda rumo ao centro para não afugentar cidadãos comprometidos com a democracia e os princípios do Estado de Direito e de uma economia de mercado.

Tal forma de enfrentamento terminou sendo muito confortável para os dois contendores, que em seus melhores momentos de relacionamento se consideravam irmãos de uma mesma ideologia social-democrata, embora um deles não se reconhecesse nesse espelhamento.

À direita não lhe sobrou nenhum espaço. O PSDB considerava-a um mero lote de votos que nele desaguaria normalmente, uma vez que esse setor da população não votaria no PT. Nos poucos momentos em que a sociedade se pôde manifestar em função propriamente de valores foi no referendo sobre o Estatuto do Desarmamento, em que a maioria da Nação votou pelo direito à legítima defesa.

O voto popular foi posteriormente desconsiderado por meio de atos administrativos, como se a vontade da maioria não devesse ser respeitada. Não é casual que Jair Bolsonaro tenha partido precisamente da defesa desse valor ancorado no direito de proteção da própria vida, tendo visto aí uma brecha que terminou se mostrando uma grande avenida.

Acontece, porém, que a sociedade passou a não mais se reconhecer nesse jogo da esquerda. Viu-se não representada. Os tucanos desaprenderam de fazer oposição, oscilando em suas posições e não sabendo fazer o enfrentamento com o PT. Pior ainda, muitos de seus líderes terminaram comprometidos com a corrupção, tirando desse partido o que era seu traço distintivo.

O PT, por sua vez, abandonou qualquer disfarce democrático e partiu para o aparelhamento ideológico e partidário do Estado, tratando-o como se fosse uma espécie de coisa sua, a ser negociada com empresários que se locupletavam num capitalismo de compadrio. Para as massas de trabalhadores e desempregados sobraram as migalhas desse enriquecimento ilícito.

Agora, com Jair Bolsonaro e, no primeiro turno, com João Amoedo, para não falar dos novos deputados e senadores, não apenas saímos da oposição estéril entre esquerda e direita, como a direita passou a se apresentar em sua diversidade. O PT ainda procura, no desespero, caracterizá-la como fascista, pois nada mais sabe fazer do que considerar os seus adversários como inimigos que deveriam ser aniquilados: o “nós” contra “eles”. O partido nunca soube conviver com o outro, apenas procura sempre consolidar a sua própria hegemonia. Nem semelhantes consegue aceitar. Ciro Gomes e Marina Silva que o digam! Foram, em diferentes momentos, simplesmente descartados e desconsiderados.

A nova direita apresenta-se agora em duas correntes. Trata-se dos conservadores e dos liberais, em sua significação inglesa, pois na vertente americana os liberais são de esquerda, na acepção local da social-democracia. Uma, representada por Jair Bolsonaro, tem sua ideia reitora em posições conservadoras, outra por João Amoedo, que expressa posições liberais.

A primeira está, principalmente, ancorada na questão dos costumes e no direito à legítima defesa. Trata-se de valores morais que deveriam, segundo essa formulação, fundamentar as posições públicas, dentre as quais a luta contra o aborto, a defesa da família, o direito à posse de armas e o combate à ideologia de gênero nas escolas. Daí nasce o apoio maciço dos evangélicos e de setores católicos a Jair Bolsonaro.

No que toca à questão econômica, as posições são menos claras, embora o candidato tenha passado a levar a sério posições liberais, como a necessidade de privatização de algumas empresas estatais, a austeridade fiscal e a urgência da reforma da Previdência, por exemplo. Em todo caso, clara está a defesa da economia de mercado e do Estado Democrático de Direito, o direito à propriedade privada, a defesa das seguranças jurídica, física e patrimonial e a liberdade de imprensa e de expressão. Aqui, posições conservadoras recortam perfeitamente as liberais.

A segunda, a liberal, parte enfaticamente da defesa da economia de mercado, insistindo na redução substancial do peso do Estado, apregoando um programa rápido e abrangente de privatizações. No que tange aos costumes, diferencia-se dos conservadores por defender outros valores, como a liberalização do aborto e das drogas e a defesa das minorias. Ou seja, a noção de liberdade seria entendida de um modo mais amplo, vindo a significar um distanciamento dos princípios conservadores.

Os próximos anos certamente serão a ocasião de desenvolvimento e de contraposição entre essas posições à direita, vindo a ser propriamente protagonistas da luta política, e não mais meras coadjuvantes de posições de esquerda, que as instrumentalizava. Caberá, isso sim, à esquerda reinventar-se, abandonando, no caso do PT, seus delírios chavistas e antidemocráticos.

*Professor de filosofia na UFRGS.

Uma ciência política cética 


- LUIZ FELIPE PONDÉ



FOLHA DE SP - 29/10

Há competência na maioria dos eleitores para escolher o presidente?

O número de títulos recentes que trazem um olhar cético sobre a democracia cresce. No caso específico que analiso aqui, esse olhar cético cai sobre a figura do eleitor. Não conhecemos nenhum sistema político melhor, mas isso não deve nos impedir de refletir de forma menos apaixonada sobre a democracia.

Existem dois modos de se fazer ciência política. Um primeiro, mais conhecido, pensa a democracia como projeto a ser aperfeiçoado nas suas virtudes. Modo muito necessário, que não é posto em dúvida por nenhum autor que represente uma abordagem mais empírica e cética da ciência política (este é o segundo modo de se fazer ciência política). As virtudes da democracia são o voto, os limites institucionais do poder representativo, a liberdade, a autonomia dos poderes, enfim, os pesos e contrapesos.

Bartels e Achen, em 2016, no seu “Democracy for Realists” (Democracia para Realistas), com sólida base empírica, nos chamavam a atenção para o fato de que a democracia é carregada de expectativas míticas (“folk theory of democracy”). Uma delas é que eleitores com maior formação educacional fazem escolhas “melhores” ou escapam de viés ideológico pesado na sua prática como eleitor. Pelo contrário, sabemos que muitos intelectuais, professores acadêmicos e jornalistas (os especialistas) votam a partir de cargas ideológicas latentes ou explícitas muito distantes do que se poderia chamar de escolhas racionais. Insistências em partidos e ou candidatos duvidosos são frequentemente objeto de culto devocional por parte de especialistas. Isso é óbvio.

Pessoas não especialistas não dispõem de tempo ou interesse prioritário dedicado a política e eleições. Na maioria das vezes estão morrendo, enterrando mortos, casando ou separando, tendo filhos e pagando contas demais para dar atenção ao tema. Segundo nossos dois autores, a maioria esmagadora das pessoas, quando se envolvem e debatem política, o fazem para reforçar suas crenças e destruir as dos outros, como as mídias sociais deixam muito claro.

Outra obra, ainda mais cética, também de 2016, escrita por Jason Brennan, “Against Democracy” (Contra a Democracia), vai mais longe em seu ceticismo para com a competência do eleitor. Os inteligentinhos não devem entender o título do livro ou a discussão que ele traz como uma proposta tosca de sistemas totalitários.

A dúvida de Brennan, que apresento aqui apenas em um dos seus aspectos, é se há competência na maioria esmagadora dos eleitores para decidir quem deve fazer a complexa gestão das sociedades. Brennan nos apresenta uma tipologia lúdica, mas nem por isso menos potente.

Os eleitores estariam divididos em três tipos. Os dois primeiros, representantes da maioria esmagadora; o terceiro, uma figura extremamente rara entre os eleitores. O primeiro são os “hobbits”, eleitores sem nenhum conhecimento sobre política ou temas como gestão de governo. Costumam ser desinteressados e votam de modo absolutamente inconsistente. Estes são disputados a ferro e fogo (por conta de seu peso numérico) pelo segundo tipo, os “hooligans”, eleitores aguerridos, com maior conhecimento de política, mas absolutamente enviesados ideologicamente, e cegos a qualquer crítica ao seu modo de pensar. O Brasil está tomado por “hooligans” nas mídias sociais. Agressivos, assertivos e impermeáveis a qualquer racionalidade cética em relação às suas crenças.

Por último, os “vulcanos” —referência ao personagem do planeta Vulcan, Mr Spock, do filme “Jornada nas Estrelas”, conhecido por sua inteligência superior, científica, sincera e racional. Um tanto blasés, bem informados e sem viés ideológico, não têm nenhum impacto nos resultados eleitorais, devido ao seu caráter numérico insignificante e à sua visão complexa da política. Em tese, salvariam a democracia de sua derrocada populista. Mas, infelizmente, são raríssimos. E a democracia é um regime de quantidades.

Outra obra cética é “People vs Democracy” (Povo x Democracia), de Yascha Mounk, essa de 2018. Para o autor, existem duas grandes ameaças à democracia. A primeira vem do caráter populista dela e de como as mídias sociais empoderam o indivíduo em sua tentação populista. Democracias podem eleger líderes muito populares e muito autoritários. Outra ameaça são agências como o Banco Central Europeu esvaziar o voto por considerá-lo irrelevante e incompetente em assuntos econômicos. Alguém discordaria que o cidadão comum não entende nada de economia complexa?

As fábricas onde se constrói o futuro

 - CORA RÓNAI



O GLOBO - 30/10

‘Há 65 anos, a Coreia do Sul teve a sorte de ter líderes que estabeleceram a educação como prioridade nacional. Hoje, mostra o caminho’


As viagens que os jornalistas de tecnologia costumam fazer têm objetivos bem definidos: o lançamento de um produto aqui, uma feira ali. Mais ou menos como jornalistas que cobrem cinema, que vão ao lançamento de um filme ou a um festival. Essas são viagens mais ou menos previsíveis, que se repetem ao longo do ano, em geral para os mesmos destinos. Às vezes, mas muito às vezes mesmo, uma viagem foge desse padrão: é quando temos a chance de visitar as empresas que fazem a tecnologia que usamos, e que alteram a paisagem cultural.

Nessas ocasiões, vemos laboratórios de pesquisa e desenvolvimento e fábricas, conversamos com engenheiros e designers. São dias intensos em que mergulhamos nas origens dos aparelhos que temos em mãos, vemos os bastidores em que tomam forma e temos vislumbres do futuro.

São maravilhosas oportunidades de conhecimento mas, ao mesmo tempo, um pouco frustrantes, porque há limites para o que podemos ver, e mais limites ainda para o que podemos contar. Fotografia, nem pensar.

Voltei anteontem de uma viagem dessas. Fui para o outro lado do mundo para ver os estúdios de design da Samsung e a sua fábrica de semicondutores em Hwaseong, cidade que fica a pouco mais de uma hora de distância da capital Seul.

A Samsung é a maior fabricante mundial de chips de memória, e vem obtendo recordes de faturamento graças a uma demanda mundial sem precedentes de DRAM: só para dar uma ideia, quando se fala em “nuvem” é de servidores com este tipo de memória que se fala. No segundo trimestre deste ano, a empresa registrou um lucro de 14,87 trilhões de wons, ou R$ 50,1 bilhões — cinco vezes o lucro da Petrobras.

Não temos nada sequer remotamente parecido no Brasil.

A fábrica emprega cerca de 40 mil pessoas, mas nas suas monumentais salas limpas quase não se vê gente — o produto é feito, transportado e embalado por robôs, numa paisagem futurista de máquinas e trilhos aéreos por onde passam carrinhos em alta velocidade.

Nós só pudemos observar essa atividade através de janelões de vidro, como aquários. As salas limpas não se chamam assim porque são limpinhas, mas porque são rigorosamente livres de qualquer poeira ou resíduo. Chão e teto são feitos com grelhas, para circulação contínua de ar. Engenheiros e equipes de manutenção não podem sequer usar perfume, e passam por jatos de ar antes de vestir macacões e máscaras que praticamente só deixam os seus olhos de fora.

É fascinante: uma daquelas atividades que a gente pode acompanhar por horas, como o vaivém dos navios no canal do Panamá, admirando o engenho humano que lhes deu forma.

Para mim, a experiência teve um lado deprimente. Era impossível esquecer que, naquele momento, brasileiros se atacavam com ódio nas redes sociais discutindo as pautas jurássicas de uma eleição deplorável, sem perceber a distância cada vez maior que nos separa do mundo.

É preciso muita determinação, e uma educação de ponta, para chegar a um resultado desses: várias gerações de seriedade, competência e dedicação. Há 65 anos, a Coreia do Sul era um país devastado pela guerra. Teve a sorte de ter líderes que estabeleceram a educação como prioridade nacional. Hoje, mostra o caminho.

sábado, 20 de outubro de 2018

                 Desespero - 


                              EDITORIAL DO ESTADÃO




Consciente de que será muito difícil reverter a vantagem de Jair Bolsonaro (PSL) na disputa pela Presidência da República, o PT decidiu partir para seu "plano B": fazer campanha para deslegitimar a eventual vitória do oponente, qualificando-a como fraudulenta. É uma especialidade lulopetista.

A ofensiva da tigrada está assentada na acusação segundo a qual a candidatura de Bolsonaro está sendo impulsionada nas redes sociais por organizações que atuam no "subterrâneo da internet", segundo denúncia feita anteontem na tribuna do Senado pela presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann, que lançou o seu J'accuse de fancaria.

"Eu acuso o senhor (Bolsonaro) de patrocinar fraude nas eleições brasileiras. O senhor é responsável por fraudar esse processo eleitoral manipulando e produzindo mentiras veiculadas no submundo da internet através de esquemas de WhatsApp pagos de fora deste país", afirmou Gleisi, que acrescentou: "O senhor está recebendo recursos ilegais, patrocínio estrangeiro ilegal, e terá que responder por isso. (...) Quer ser presidente do Brasil através desse tipo de prática, senhor deputado Jair Bolsonaro?"

Como tudo o que vem do PT, nada disso é casual. A narrativa da "fraude eleitoral" se junta ao esforço petista para que o partido se apresente ao eleitorado - e, mais do que isso, à História - como o único que defendeu a democracia e resistiu à escalada autoritária supostamente representada pela possível eleição de Bolsonaro.

Esse "plano B" foi lançado a partir do momento em que ficou claro que a patranha lulopetista da tal "frente democrática" contra Bolsonaro não enganou ninguém. Afinal, como é que uma frente política pode ser democrática tendo à testa o PT, partido que pretendia eternizar-se no poder por meio da corrupção e da demagogia? Como é que os petistas imaginavam ser possível atrair apoio de outros partidos uma vez que o PT jamais aceitou alianças nas quais Lula da Silva não ditasse os termos, submetendo os parceiros às pretensões hegemônicas do demiurgo que hoje cumpre pena em Curitiba por corrupção?

Assim, a própria ideia de formação de uma "frente democrática" é, em si, uma farsa lulopetista, destinada a dar ao partido a imagem de vanguarda da luta pela liberdade contra a "ditadura" - nada mais, nada menos - de Jair Bolsonaro. Tudo isso para tentar fazer os eleitores esquecerem que o PT foi o principal responsável pela brutal crise política, econômica e moral que o País ora atravessa - e da qual, nunca é demais dizer, a candidatura Bolsonaro é um dos frutos. Como os eleitores não esqueceram, conforme atestam as pesquisas de intenção de voto que expressam o profundo antipetismo por trás do apoio a Bolsonaro, o PT deflagrou as denúncias de fraude contra o adversário.

O preposto de Lula da Silva na campanha, o candidato Fernando Haddad, chegou até mesmo a mencionar a hipótese de "impugnação" da chapa de Bolsonaro por, segundo ele, promover "essa campanha de difamação tentando fraudar a eleição".

Mais uma vez, o PT pretende manter o País refém de suas manobras ao lançar dúvidas sobre o processo eleitoral, assim como já havia feito quando testou os limites legais e a paciência do eleitorado ao sustentar a candidatura de Lula da Silva. É bom lembrar que, até bem pouco tempo atrás, o partido denunciava, inclusive no exterior, que "eleição sem Lula é fraude".

Tudo isso reafirma, como se ainda fosse necessário, a natureza profundamente autoritária de um partido que não admite oposição, pois se julga dono da verdade e exclusivo intérprete das demandas populares. O clima eleitoral já não é dos melhores, e o PT ainda quer aprofundar essa atmosfera de rancor e medo ao lançar dúvidas sobre a lisura do pleito e da possível vitória de seu oponente.

Nenhuma surpresa: afinal, o PT sempre se fortaleceu na discórdia, sem jamais reconhecer a legitimidade dos oponentes - prepotência que se manifesta agora na presunção de que milhões de eleitores incautos só votaram no adversário do PT porque, ora vejam, foram manipulados fraudulentamente pelo "subterrâneo da internet".

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Tudo chute -


 J.R. GUZZO


Tudo chute - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA 16 out 2018
Bolsonaro iria perder de ”qualquer adversário” no segundo turno

As últimas pesquisas de “intenção de votos” que estão circulando na praça dizem, em números redondos, que Jair Bolsonaro está com cerca de 60% das preferências do eleitorado, contra 40% de Fernando Haddad. Mas esperem um momento: deve haver alguma coisa errada aí. Até às vésperas da votação do primeiro turno, todas as pesquisas (e a mídia insistia muito nesse ponto: todas as pesquisas) garantiam que Bolsonaro iria perder de qualquer dos outros candidatos no segundo turno. Repetindo: de qualquer candidato. Nove em cada dez análises se fixavam na importância terminal desta informação vinda da ciência estatística. Podia se contar com diversos cenários, mas uma coisa pelo menos estava certa, acima de toda e qualquer dúvida: o candidato da direita iria perder a eleição no segundo turno, seja lá o adversário que sobrasse para a disputa com ele. Até o Meirelles? Aparentemente, não chegaram a medir a coisa nesses detalhes, mas as manchetes diziam que Bolsonaro perderia de todos os candidatos no segundo turno, e como Meirelles (ou o cabo Daciolo, ou o Boulos, ou o Amoedo, ou o Álvaro Dias etc.) eram candidatos, sempre dá para dizer, tecnicamente, que até essas nulidades iriam ganhar dele. Não aconteceu nada de extraordinário de lá para cá. Porque, então, as pesquisas preveem agora exatamente o oposto do que previam cinco minutos atrás?

Os institutos de pesquisa fariam uma especial gentileza ao público se explicassem, em umas poucas palavras compreensíveis, por que seus números devem ser levados a sério no segundo turno, se mostram agora o contrário do que mostravam no primeiro. Não conseguindo fazer isso, talvez ficasse mais simples dizer o seguinte às pessoas: “Esqueçam o que a gente deu no primeiro turno. Era tudo chute”. Chute ou torcida, tanto faz, porque uma coisa é tão ruim quanto a outra e, no fim das contas, nenhuma das duas será cobrada. Como sempre acontece, se Bolsonaro ganhar mesmo as eleições, os autores das pesquisas dirão que ficou provado o quanto eles acertaram – pois o resultado que costuma sobrar na memória é o último. Daqui a pouco, contando com esquecimento geral por parte do público, estarão propondo novas profecias para quem estiver interessado. E em 2022, ou já em 2021, prepare-se para ler que Lula está na frente de todo mundo com 50%, que Marina está subindo e Ciro Gomes começa a crescer. Bolsonaro, se for eleito agora e se candidatar à reeleição, estará com 0%. Na reta final os números serão ajustados de novo (“ocorreram mudanças no processo decisório”) e tudo continuará como sempre foi.

As pesquisas eleitorais de 2018 deixaram claro, mais que em qualquer eleição anterior, o quanto elas estão sendo incapazes de medir aquilo que está realmente na cabeça do eleitor. Foi um desastre. Dilma Rousseff foi garantida como a senadora mais votada do Brasil e ficou num quarto lugar em Minas Gerais. O senador de São Paulo Eduardo Suplicy, outro “eleito” pelas pesquisas, foi exterminado após 27 anos de Senado. Houve erros grotescos nas pesquisas para governador de Minas e Rio de Janeiro – os que acabaram colocados em primeiro lugar tinham 1% dos votos, ou nada muito diferente disso, até poucos dias antes da eleição. Geraldo Alckmin ficou com menos de 5% dos votos. Marina Silva ficou com 1%. No Nordeste, que foi citado durante seis meses seguidos como o grande celeiro de onde Lula poderia operar a sua “volta”, o PT teve 10 milhões de votos a menos que em 2014. Das sete capitais da região, perdeu em cinco. Erros deste tamanho, por mais que os institutos neguem, são sintoma de alguma coisa profundamente errada no sistema todo. Como escrito acima, tudo isso tende a cair rapidamente no esquecimento, sobretudo porque não há paciência para ficar discutindo um assunto que não interessa mais até a próxima eleição. Mas o problema não vai sumir só porque não se falará mais nele.

As pesquisas, com certeza, não conseguiram captar as correntes que se movimentam no oceano da internet e do mundo digital como um todo. Não entenderam nada sobre o peso que as redes sociais tiveram no processo eleitoral. Seus questionários podem não estar fazendo as perguntas certas, na maneira certa, na hora e no lugar certos. Na disputa nacional, o papel da propaganda obrigatória na televisão, tido como algo sagrado, mostrou que está valendo zero – e as pesquisas não estavam preparadas para isso, nem para o efeito nulo dos “debates” entre candidatos na TV, das opiniões dos comentaristas políticos e da orientação geral da mídia. Está surgindo um mundo novo por aí. Não será fácil para ninguém começar a entender como ele vai funcionar. Uma boa razão, portanto, para começar já o esforço.